Natália Agra e o calor do esquecimento

Natália Agra e o calor do esquecimento
A poeta e editora Natalia Agra, autora do recém lançado 'Noite de São João', pela Corsário-Satã (Foto: Divulgação)

 

Natália Agra é uma poeta do silêncio. Seus versos falam de um tempo suspenso. São poemas-réquiens, onde ela homenageia seus mortos pelo espaço que deixaram: “a casa estava tão vazia que dava para ouvir/ o tique-taque de três relógios diferentes”. É como se eles tivessem preenchido tanto — e tão fortemente — determinados momentos da vida que agora o que fica é o oposto, um lugar deserto. Como escreveu Maurice Blanchot: “Só há silêncio se houver a palavra e o barulho produzindo-se para cessar”. Assim faz Agra em Noite de São João (editora Corsário-Satã), seu segundo livro de poemas, lançado em junho deste ano: um som melodioso e afinado, que não usa subterfúgios como ironia ou humor para minimizar o amor, a ausência, a dor da morte. Como Orides Fontela e Alejandra Pizarnik, grandes influências da poeta alagoana, Agra constrói poemas que te levam ao cerne da dor — e depois ao vazio dela. Mas é um vazio feito de imagens oníricas, como se você olhasse para um quadro impressionista, onde há a captação do momento (memória) com pinceladas de cores claras (versos) que, colocadas uma ao lado da outra, são misturadas pelos olhos de quem as vê (emoção). Ao ler seus poemas, dá para sentir — quase tocar — os entes que já não estão.

Já escreveu Guimarães Rosa: “O que lembro, tenho”. Agra faz da memória que conserva de seus mortos uma ode à beleza em 29 poemas, muitos deles prefaciados com dedicatórias a parentes falecidos. A dor da ausência é a presença mais forte do livro, mesmo quando há um esforço para deixar os mortos, por um instante que seja, mortos. Ela inicia a obra com um verso que mostra esta tentativa de acalmar a memória em meio a uma das festas mais populares e calorosas do Brasil: “todos ao redor desta fogueira/ buscam o calor do esquecimento”. Esta tentativa, nos versos de Agra, é algo fugaz, porque as pessoas ausentes que acompanham a poeta parecem estar em todos os seus poemas, não há possibilidade de fuga. Em “O passado é uma casa abandonada de onde nunca conseguimos sair”, que vem com a dedicatória “Para tia Lu, minha segunda mãe (in memoriam)“, há o sentimento de desemparo de quem muito cedo teve de se estruturar em seus próprios alicerces: “estou só, com as ferrugens do passado/ você não mais é em mim aquele lugar no mundo/ o quarto está escuro”.

 

A morte ronda o livro de Agra do início ao fim. O
luto está em não poder voltar o tempo, em não ter
mais os lugares e as pessoas que criaram suas
memórias essenciais.

 

 

É como se a morte — o silêncio — tomasse conta das palavras da poeta. Mas ela consegue – como já fez em De repente a chuva (Corsário-Satã), seu primeiro livro de poemas – dar à dor a dose equivalente de beleza. Diferentemente de Fontela, neste aspecto, que tinha a tradição de fazer uma poesia antilírica, Agra não tem medo dos sentimentos. “Deveria haver uma flor com seu nome”, escreve no poema dedicado à avó Amália. E termina: “na lembrança:/ o jardim da tua despedida/ (cortejo das lágrimas)/ saudade/ na tarde/ onde te perderia/ de vista/ nos campos de margaridas”.

Noite de São João é dividido em duas partes: “Fogo-fátuo” e “Reminiscências”. Na primeira, há os poemas que decorrem desta chama azulada, o fogo-fátuo, causada por organismos em decomposição. Uma chama que dura pouco, mas é capaz de um estrondo e da sensação de que pode seguir rastros humanos. Assim como os poemas de Agra: curtos, certeiros, como uma aparição: “hoje sinto uma sombra/ ao meu lado/ e pouco a pouco o vejo/ velho e moço”, escreve em “José”, dedicado a seu avô, “a fumaça da casa”. No poema “Fogo-fátuo”, já quase no fim desta primeira dança com os mortos, Agra lembra em prosa os últimos momentos que só sabemos como últimos quando perdemos alguém: “ouvimos tantas vezes o mesmo pássaro, não é, pai?, e teve que ser eu a fechar a última porta entre nós. parece certo dizer, por repetidas vezes, que há em toda morte um pouco da nossa própria morte. um duplo terrível. um espelho fantasmal. e real. a gente contempla, na figura do outro (estática), o início do nosso fim. hoje, passados tantos anos, daquelas horas derradeiras e por horas infinitas, em que guardei do teu rosto as últimas folhas, reflito sobre o rio que agora nos distancia: somos meu pai e eu: um rio imenso, que nos atravessa”.

Neste poema, o maior do livro, Agra está “nesta fábula inquietante pelo deserto”, onde dedica “várias horas dos dias ao diálogo áfono com cada um dos meus mortos, fantasmas presos eternamente no assoalho da memória”. Esta inversão, quando é a poeta que tenta salvar quem sempre esteve ali por ela (“para meu pai, que iluminou o mundo para mim”) é que temos a dimensão do tamanho da ruptura. Agra, ou o seu eu lírico (pois poesia também é ficção), existe como um ser solitário, não é dada mais a ela a chance de ser em dois, de estar com quem a guiava. Neste momento, nos vem o pensamento, que é também um destino comum, de Novalis: “Estamos sós com tudo aquilo que amamos”.

Na segunda parte do livro, chamada “Reminiscências”, segundo Platão, a recordação de uma verdade observada pela alma no momento da desencarnação, Agra continua seu flerte com o desalento, o absurdo da morte, este eterno Sétimo Selo. Desta vez, fala também de seus ídolos, ausência sentida de forma igualmente profunda, como é característica dos versos da poeta. No poema “Alejandra Pizarnik”, a delicadeza do sofrimento de quem se sente órfão aparece em versos que levam o leitor a um lugar idílico: “teu nome, impossível primavera/ canta furioso/ como uma só pétala/ a música que toca a pele úmida/ ausência/ repousa nas mãos das nuvens/ teu corpo/ sobre a água/ apenas teu nome/ emana/ flores/ flora/ cornucópia“.  Em “Vestido de festa”, dedicado a Orides Fontela, “que tinha heliantos nas mãos”, a morte em vida também aparece, muitas vezes mais cruel do que a morte real: “de luto seu/ coração/ nunca sangrou/ pelo amor”. No poema dedicado a W. B. Yeats, “Augúrios”, Agra parece abrir espaço, em contraste com a iminência da morte, para uma dose de alento, em versos como: “calo os tempos difíceis/ com a mesma nuvem/ que resiste à violência”. O mesmo lampejo aparece em “Limbo”, quando Agra escreve: “de volta ao trem fantasma,/ penso que,/ da vida,/ a passagem é ainda mais bonita/ porque só dura um segundo”.

 

As escolhas semânticas de Agra em Noite de São
João
são assertivas para que os temas filosóficos
— morte, memória, vazio existencial — cresçam
aos olhos do leitor.

 

 

Ela usa palavras-símbolo, muitas vezes em conjunto, criando um universo sagrado em seus versos, como uma oração. No poema “Paul Celan”, outro autor com o qual Agra se identifica, ela inicia com: “sibila o primeiro verso dentro do pássaro/ a aurora/ sem gravidade/ ancora o infinito”. Mas Agra também é capaz de nos surpreender, logo em seguida, com o uso de palavras cotidianas, de nos puxar de volta para a vida, quando termina o livro com este poema-epitáfio: “destruam logo esta casa,/ está cheia de fantasmas”, onde retoma o tema da exaustão que é andar sempre acompanhada de quem já não está.

Agra, neste Noite de São João, nos entrega toda a dor causada pela morte, sim, mas também com ela o sentido da existência. Porque se a poeta sente tanto (como muitos de nós) pelos que partiram é porque foram eles — os parentes, os amigos, os poetas que lhe eram caros — que deram a ela o ouro, o memento mori (lembre-se da morte). Agra trilha o caminho de Sêneca em “Cartas a Lucílio”, que, ao pensar na morte com afinco, lembra-se a todo instante da vida. Como escreveu o filósofo, “é um erro imaginar que a morte está à nossa frente: grande parte dela já pertence ao passado”. Assim, os entes caminham juntos, mas não há mais o peso que nos afunda. Natália Agra vê isso muito bem: “lá está a morte/ reconheço seus ossos”.

Ao terminar o livro, percebe-se a distância que a poeta consegue tomar diante do vazio. Como se ela, em meio ao deserto, e durante o processo da escrita de versos significativos, levasse agora consigo, como uma cruz de proteção perante a dor extrema, os versos de Joseph Brodsky: “Habitua-te a viver com este segredo:/ no vazio /sem limites, sabes, os sentimentos/ são um alívio”.

Noite de São João
Natália Agra
Corsário-Satã
64 páginas – R$ 36,90

Michaela v. Schmaedel é editora e poeta, autora do livro Coração cansado (editora Penalux, 2020)


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