Notícias de outras ilhas: Manuella Bezerra de Melo

Notícias de outras ilhas: Manuella Bezerra de Melo
A escritora Manuella Bezerra de Melo (Foto: Arquivo pessoal)

 

Nascida no Recife, Manuella Bezerra de Melo é jornalista e escritora, especialista em literatura brasileira e interculturalidade e mestre em Teoria da Literatura. Viveu no Brasil, na Argentina virou aldeã, hoje está em Portugal. Morou em Braga, atualmente reside em Guimarães, amanhã é outro dia. Está na antologia Pedaladas poéticas (Aquarela Brasileira, 2017), publicou Desanônima (Autografia, 2017), Existem sonhos na rua amarela (Multifoco, 2018) e Pés pequenos pra tanto corpo (Urutau, 2019).

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena –, indica poemas de Golgona Anghel, Judite Canha Fernandes e Patrícia BaltazarA curadoria é de Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário da escritora abaixo.

 

Quando atravessei o oceano em 2017 para me estabelecer em Portugal, trouxe comigo a energia da efervescência poética sentida no Brasil. Estava contaminada pelo Um útero é do tamanho de um punho, da Angélica Freitas, pelo Martelo da Adelaide Ivánova, e pelos slams da periferia e das palavras das mulheres negras brasileiras. Esta poesia recente resplandecia nestas obras e em outras o sentimento de enfrentamento da narrativa hegemônica que sustentou – e ainda sustenta – o sistema literário brasileiro. Aos poucos, esta produção foi ocupando algum território e furando, ainda que pouco e lentamente, o bloqueio que invisibilizava a poesia produzida por mulheres, resultando numa fase com uma marca bem feminina da literatura brasileira. Ao pisar aqui, dei-me conta que meu conhecimento da literatura portuguesa era mais limitado do que gostaria, privilegiando erudição, o cânone e o passado, e abrindo-me pouco para a produção da minha época, do meu tempo. Obviamente que a diferença cultural e histórica entre Brasil e Portugal é abissal, e isso é refletido na literatura produzida em solo luso. No entanto, acredito que deve ser um compromisso de todos promover e fazer circular o que tem sido produzido nos países no sentido de contribuir cada vez mais para a redução das desigualdades e valorizando mais a diversidade. Portugal é um país plural, mais plural do que aparenta, repleto de imigrantes e pessoas de muitas etnias e rostos, e na literatura que divulga isto deve estar nítido também. Por isto, desde então tenho mergulhado no mundo dos autores portugueses que tem vozes dissonantes, e garanto que é um mergulho que vale a pena. Começo, portanto, pelas mulheres. As poetas que elegi são imensas, no entanto, são desconhecidas mesmo em Portugal e ainda mais em outros países, como no Brasil. Elegi-as no tocante dos versos que apresento, cada uma delas diferente entre si, no entanto, poetas deste tempo, do agora, que oxalá sejam lidas em muitos futuros.

A primeira delas, Golgona Anghel, ganhou-me pelo sarcasmo quase cruel com o que seus versos escancaram nossas contradições. Sua poesia não tem crença, ideologia, nenhuma guerra pra lutar, no entanto tem tudo isto justamente porque desdenha de si como quem desdenha do mundo inteiro e de suas estruturas tal como são, e faz isso dando riqueza à linguagem com referências eruditas e populares na sua poética.

 

***

Não me interessa o que
dizem os dissidentes da ditadura.
Mas confesso que gostava dos chocolates Toblerone
que a minha tia me trazia no Natal.

Não acredito nos detidos políticos,
nem me impressionam os miúdos descalços
que mostram os dentes para as máquinas Minolta
dos turistas italianos.

Não vou pedir asilo.
Desconheço os avanços
ou retrocessos económicos do meu país.
Já falei de Drácula que chegue.
Já apanhei morangos na Andaluzia.
Já fui cigana, já fui puta.
Escusam de mo perguntar outra vez.

O que me preocupa – e isso, sim, pode ser relevante
para o fim da história – é saber
quando é que me transformei,
eu que era uma loba solitária,
neste caniche de apartamento que vos fala agora?

(RESUMO, a poesia em 2010, Assírio & Alvim, 2011)

***

Devia Escrever coisas mais divertidas
Entreter as massas
Evitar, ao menos, cenas tristes,
Mudar de roupa uma vez por mês
Podia, decerto, afastar-me, sair do corpo
Dos seus humores.
Entrar na biopolítica, usar os seus métodos
Engravidar uma ideia alegre.
Enfim, nada contra os suicidas de carreira
E os demais performers do além.
Não é que não me apeteça largar-te
Num elétrico sem travões.
Deixar-te num país estrangeiro,
Sem dinheiro e sem memória
Não se iludam, ainda sei baixar as calças.
Fazer o truque
Mas se o meu psiquiatra ler isto,
Vai achar que o tratamento
Já não funciona

(Nadar na piscina dos pequenos, Assírio & Alvim, 2017)

***

A Judite Canha Fernandes está aqui porque tenho uma identificação pessoal com sua poética e porque é uma poeta que merece ser muito lida. Seus versos têm todos os motivos de ser, inspiram-se no real, tão descritivos quanto sensoriais, são palpáveis, isto sim, mas podemos pegar e também senti-los. Angustiam porque tratam da carne e do sangue, das memórias e da história, porque são grafados no hoje e no agora em busca do ‘para sempre’. A política é um fundamento importante na poética de Judite, que aparece nos versos em forma de rebeldia, de inconformidade. No entanto, elegi este poema abaixo, cujos elementos femininos ganham uma força tão bruta quanto humana ao imprimir essa política para dentro do corpo da mulher.

 

Não tenho propriedade privada no frigorífico
cozinho sempre amor coletivo.

Tento existir livremente
ou livre da mente, não sei.
converso por telepatia
faço de uma casa gratuito festival
e repito todos os gestos. De todas as infâncias,
de todas as perguntas.

amo como se o coração fosse uma bomba relógio,
insiro uma frase poética na tradução de uma carta comercial
aguento o calor dos fundos mais vulcânicos sem reagir.

sem reagir
asso a argila
até ser capaz de decidir por mim o que vou querer.

sou a heroína inevitável das minhas rotinas.

empatia.urgentemente.
(ainda era 19 de janeiro de 1923 e já se dizia o mesmo)
amamento meu filho. Posso alimentar
com meu proprio corpo
a vida bela e simples, espontanea e milagrosa.

ou não, nao sou mãe.
não me reproduzo.
beijo pessoas de orgãos reprodutivos iguais aos meus pela rua.
ocupo uma casa, um squat.
lembro-me todos os dias que sou bonita mesmo que o mundo insista que sou feia.
lembro-me todos os dias da beleza mesmo que o mundo me apavore.
lembro-me e deslumbro-me todos os dias.

aprendo que o amor não depende de uma pessoa só.
tão só.

nada só,
entre tantos pardais em busca de um poema coletivo.

(O mais difícil do capitalismo é encontrar o sítio onde pôr as bombas, Urutau, 2019)

***

Conheci a Patrícia Baltazar por indicação de um amigo poeta em 2016, pouco antes de chegar a Portugal. Li alguns de seus poemas pela internet e, ao chegar em Portugal, a primeira coisa que fiz foi tentar comprar seus livros, dificílimos de serem encontrados, publicados com tiragens pequeninas. Patrícia faleceu em 2019 por complicações de um câncer e me deixou uma sensação de que tinha muito mais a dar. Com muita luta consegui um dos livros, e deixo aqui um dos meus poemas favoritos.

 

Acredito que o amor exista movendo mundos, mas que não se movimenta no meu. Nas histórias de princesas salvas da morte por épicos príncipes em cavalos muito ligeiros, sempre acreditei mais nos cavalos. Os cavalos são a força e a celeridade. Os cavalos são os verdadeiros heróis.

Isto que acabei de dizer não é uma conclusão — é uma mão no peito.

(ré menor, Língua Morta, 2010)


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