Notícias de outras ilhas: Leila Guenther
A escritora Leila Guenther (Foto: Arquivo pessoal)
Leila Guenther é autora de Partes homólogas (Editora Reformatório), Viagem a um deserto interior (Ateliê Editorial) e O voo noturno das galinhas (Ateliê Editorial). Queria viver em Paris, Texas, ou entre lobos da estepe. Sente saudades de Quioto, onde nunca esteve.
Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena – indica poemas de Adriana Versiani. A seção é curada por Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário da poeta abaixo.
Nestes dias de apocalipse, volto ao trabalho de Adriana Versiani dos Anjos, porque ele é ao mesmo tempo da morte e da vida. Venho tentando amarrar, entender os sinais, que têm em comum o poder da palavra, seu poder de criação e de destruição: poesia, maldição, mantra, oração. Quando me iniciei na literatura, era como Adriana que eu queria escrever. Mais tarde, quando eu mesma estive entre a vida e a morte, há exatos dez anos, por causa de um vírus que atacou meus pulmões, Adriana, que eu tinha visto pessoalmente apenas uma vez, dedicou-me um poema, “O templo de Leila e a chave que perdi”. E eu, a despeito de todos os prognósticos médicos, sobrevivi. A ele recorro, como uma oração, quando me sinto à beira do fim. E a seus outros textos, como os de A lâmina que matou meu pai, quando estou perto da luz, para me lembrar que o escuro existe. Por isso me refiro ao poder que as palavras têm. De mudar nossa vida, de nos matar, de nos salvar. Inclusive à nossa revelia.
***
Lilith
I
Hora do Angelus:
As amaldiçoadas Evas de Santana do Rio Verde
[batem com o joelho no chão.
Ainda uma menina o tempo se abre para mim.
Anoitece e tento mais uma vez esta história.
Meu nome é linguagem.
II
Atravessei a estrada carregando umas coisas.
A vida não era mais o que houve até então.
A dez minutos do pasto seco, esta casa é a cidade
[de matutos e livros empoeirados.
Nesta tarde, um novilho rumina três vezes
[antes de morrer.
Sento à sua sombra.
III
Mais cedo meu pai deseja a minha morte.
Da palavra de homem apanho calada até
[os sinos rebentarem.
Sou linguagem.
IV
Quinze mulheres me ensinaram a ler o destino
[nos farelos de pão espalhados pela
[mesa do café, todas as manhãs.
Todas as manhãs, as roupas no varal.
As notícias no velho rádio de válvulas,
[todas as manhãs.
Com minha avó aprendi a cantar.
O resto li nos livros.
V
Imóvel, amarrada a esta cadeira não tenho força
[para cortar os pulsos.
O imbecil trancou-se na gaiola.
Mãe, a Guerra Santa mal começou.
VI
Briga de socos.
Coração é músculo.
O líquido que escorre entre as minhas pernas
[mancha a história do quintal.
Um dente cai sobre o chão de terra batida.
Se fosse sonho seria presságio.
VII
Travesseiro de macela e uma noite de amor.
Este homem parece um menino quando dorme.
Passo o café no coador de pano.
Casa, seu cheiro é linguagem
VIII
O tempo se abre para mim e do outro lado da
[mesa me vejo no meu irmão.
Depois do mata-burro tem um lago.
Brincamos de sermos os sanhaços azuis que
[tomam banho lá, eu e meu irmão.
IX
Juro que eu queria que todas as flores
[procurassem o sol.
Água corrente, juro que eu queria.
Juro que eu queria alimentar a chama.
Minha sina de mulher, juro que eu queria.
Guardei todos os escritos no baú que herdei do
[meu avô, para que meus filhos vejam.
No dia da minha morte, tudo que eu queria.
X
A menininha tossiu e me levantei para cobri-la.
Senti frio.
Fingimos dormir, enquanto as botas tingem de
[terra os tacos.
XI
Pálida, fraca.
O viço se misturando a lã do cobertor marrom.
Não abre mais os olhos.
Matar-se resolveria o problema.
Sua vingança:
Viver para sempre deitada no sofá da sala.
***
De A lâmina que matou meu pai
3
Sou lírica.
Trago lábios tensos e a lâmina que barbeou
meu pai a quem beijei antes da morte.
Meses inteiros na câmara escura, a luz
me remete a impropérios de toda ordem.
Sou lírica.
4
Estrume no canteiro dos mortos, olho
encantada essa desintegração, esse novo
alimento. Somos nós a nova geração de seres
que se alimentam de veneno puro, três doses
de veneno puro e só existem chapéus e um
canal que liga as Américas. A minha fonte
primordial anda suspensa, na corda bamba
da decadência: Veneza sucumbindo às águas.
Trago na mala a navalha com a qual retalhei
meu pai. Era tarde? Mastiguei um pouco da
carne e os cães brancos me perseguiram.
Nevava nos trópicos, os rios congelando e eu
correndo e pulando de um bloco para outro.
Lavei o sangue da navalha no canal que liga as
Américas.
***
A menor parte
Que letra foi gravada em minha alma?
Qual palavra me formou?
Ando, caminho por corredores iluminados
pelos laranjas e amarelos das fotografias.
Trago as unhas escuras como as de quem procurou
por objetos na casa incendiada.
Venta sobre o mármore:
Esqueceram-me.
P.S.1: Amarrando os sinais, deparei-me com uma série que Adriana vem disponibilizando, chamada “Memórias do confinamento”, de garrafas náufragas, objetos poéticos vindos de outras ilhas.
P.S.2: O vírus que quase me matou privando-me de respirar, como se me afogasse, mudou minha relação com a vida e me levou a desenvolver um forte interesse por práticas contemplativas voltadas à respiração, principalmente da tradição oriental, como shamata (meditação que recai sobre a respiração), pranayama (tipos de respiração do yoga), tonglen (prática tibetana em que se inspira o sofrimento dos outros e se expira devolvendo-lhes compaixão). Foi por causa desse interesse, por sua vez, que cheguei, neste confinamento, à obra A caverna na neve, de Vicki Mackenzie, uma biografia da monja budista inglesa Tenzin Palmo, que passou doze anos isolada em retiro de silêncio numa caverna nos Himalaias, meditando dozes horas por dia, entoando mantras, dormindo sem nunca se deitar. Tenzin buscava atingir a iluminação na forma feminina e entender a natureza do sofrimento humano. Da vida e da morte. “Lembro de observar os ônibus a passar, as luzes acesas e as pessoas dentro deles rindo e falando, e pensei: ‘Elas não sabem, não veem o que vai acontecer?’” Os sinais me dizem que devo continuar respirando, pelo menos por hoje, na solidão e na comunhão da palavra.