Notícias de outras ilhas: Josoaldo Lima Rêgo

Notícias de outras ilhas: Josoaldo Lima Rêgo
O poeta maranhense Josoaldo Lima Rêgo (Foto: Divulgação)

 

Josoaldo Lima Rêgo nasceu no Maranhão, em 1979. É autor de Paisagens possíveis (2010), Variações do mar (2012) Máquina de filmar (2014) e Sapé (2019), publicados pela Editora 7Letras. Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena sob curadoria de Tarso de Melo –, sugere a leitura de poemas de Mário Cesariny, João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar. Leia abaixo.

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Barricada

Mário Cesariny

Quando já não pudermos mais chorar e as palavras forem pequeninos suplícios e olhando para trás virmos apenas homens desmaiados, então alguém saltará para o passeio, com o rosto já belo, já espontâneo e livre, e uma canção nascida de nós ambos, do mais fundo de nós, a exaltar-nos!
Tu sabes se te quero e se fomos os dois abandonados, abandonados para uma bandeira, para um riso que sangre,
para um salto no escuro, abandonados pelos lúgubres deuses, pelo filme que corre e desaparece, pela nota de vinte e um pedais, pela mobília de duas cadeiras e uma cama feita para morrer de nojo. Minha criança a quem já só falta cuspir e enviar corpo e bens para a barricada, meu igual, tu segues-me; tu sabes que o caminho é insuportavelmente puro e nosso, é um duende gritando no telhado às ervas misteriosas, é um rapaz crescendo ao longo dos teus braços, é um lugar para sempre solene, para sempre temido! E o Rossio é uma praça para fazer chorar. Salvé, ó arquitectos! Mas choremos tanto que será um dilúvio. Automóveis-dilúvio. Sobretudos-dilúvio. Soldadinhos-dilúvio. E quando essa água morna inundar tudo, então, ó arquitectos, trabalhai de novo, mas com igual requinte e igual vontade:
vinde trazer-nos rosas e arame, homens e arame, rosas e arame.

em Pena capital, 1957 

*** 

O fim do mundo

João Cabral de Melo Neto

No fim de um mundo melancólico
os homens lêem jornais.
Homens indiferentes a comer laranjas
que ardem como o sol.

Me deram uma maçã para lembrar
a morte. Sei que cidades telegrafam
pedindo querosene. O véu que olhei voar
caiu no deserto.

O poema final ninguém escreverá
desse mundo particular de doze horas.
Em vez de juízo final a mim preocupa
o sonho final.

em O engenheiro, 1945

***

Morte de Clarice Lispector

Ferreira Gullar

Enquanto te enterravam no cemitério judeu
do Caju
(e o clarão de teu olhar soterrado
resistindo ainda)
o táxi corria comigo à borda da Lagoa
na direção de Botafogo
E as pedras e as nuvens e as árvores
no vento
mostravam alegremente
que não dependem de nós

em Na vertigem do dia, 1980


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