Notícias de outras ilhas: Demétrio Panarotto
O poeta, escritor e roteirista Demétrio Panarotto (Foto: Pati Peccin)
Demétrio Panarotto nasceu em Chapecó-SC, em 1969. É doutor em Literatura pela UFSC e professor de roteiro no curso de Cinema da UNISUL. Músico, roteirista, poeta, escritor, é idealizador do programa Quinta Maldita (na webrádio Desterro Cultural) e do PIPA Festival de Literatura (na companhia de Juliana Ben). Publicou Blasfêmia (Butecanis Editora Cabocla, 2018), 18 versos para o funeral de Demétrio Panarotto (Papel do Mato Oficina Tipográfica, 2018), Lotação (Medusa, 2018), entre outros. Foi responsável pela Organização de Livres somos versos, em parceria com Arlyse Ditter (ACB, 2018, poemas) e Cartaze, em parceria com Arlyse Ditter (ACB, 2019, poemas); mais alguns discos e alguns filmes. Reside em Florianópolis.
Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena – indica poemas de Gregório De Matos, João Cabral de Melo Neto e Ricardo Aleixo. Leia abaixo os poemas e os comentários do poeta.
Durante o período de reclusão tenho assistido muitos filmes ao acaso, na TV — esse tempo-pausa, que tanto buscávamos e que não sei se veio como queríamos, parece nos colocar, como uma extensão da realidade, dentro do tubo da imagem, transformando-nos em ficção. Para além desses, retomei um olhar sobre a filmografia de Sharunas Bartas, em especial, aqui destaco o que se pode pensar como uma trilogia para esse momento: O corredor, A casa e Liberdade (os três filmes, de maneira poética, nos lançam nos “entre-lugares” do confinamento: a casa, que agora nos parece uma prisão; a liberdade, como uma espécie de juntar o que sobrou e recomeçar a vida; e o corredor, o percurso entre o passado — aquilo que, para nós, não despiu o presente — e o futuro). Além de Sharunas, retomei um olhar sobre o cinema brasileiro. A produção cinematográfica contemporânea, Bacurau (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles) é um dos exemplos, reascendeu a vontade de voltar a assistir filmes que permeiam as mesmas questões: Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha) e Cabra marcado para morrer (Eduardo Coutinho) são duas opções para montarmos e desmontarmos o quebra-cabeça político desse país com dimensões continentais. Na playlist do meu deserto sigo ouvindo muita música brasileira: André Abujamra, Mauricio Pereira, Wado, Alex Sant’anna, Wander Wildner (em estúdio), Atahualpa y us Panquis (disco lançado o ano passado), entre outros.
Na cabeceira da minha cama sempre tenho dois ou três livros que vão e voltam (que já travei com eles alguns embates e que pretendo travar outros) e um tanto de poesia, em especial, contemporânea. Dos livros que me propus a ler, agora pacientemente, Uma viagem à Ìndia, de Gonçalo M. Tavares, e Seis propostas para o novo milênio, de Ítalo Calvino, esse último, como alento, para equilibrar a luz do tubo de imagem. De poesia, estão por lá: Josoaldo Lima Rêgo, Abrasabarca (um coletivo de mulheres aqui de SC), Carlos Augusto Lima, Ana Elisa Ribeiro, Cristiano Moreira, Casé Lontra Marques, Isadora Krieger, Dyl Pires, dentre outros e outras.
Dos poemas e dos poetas, em que a palavra, como ferro em brasa, marca o corpo, cito três (encharcados da prosódia que nos envolve): Gregório De Matos, João Cabral de Melo Neto e Ricardo Aleixo.
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Mote
Gregório de Matos
De dous ff se compõe
esta cidade a meu ver
um furtar, outro foder.
Recopilou-se o direito,
e quem o recopilou
com dous ff o explicou
por estar feito, e bem feito:
por bem Digesto, e Colheito
só com dous ff o expõe,
e assim quem os olhos põe
no trato, que aqui se encerra,
há de dizer, que esta terra
De dous ff se compõe.
Se de dous ff composta
está a nossa Bahia,
errada a ortografia
a grande dano está posta:
eu quero fazer aposta,
e quero um tostão perder,
que isso a há de preverter,
se o furtar e o foder bem
não são os ff que tem
Esta cidade a meu ver.
Provo a conjetura já
prontamente como um brinco:
Bahia tem letras cinco
que são B-A-H-I-A:
logo ninguém me dirá
que dous ff chega a ter,
pois nenhum contém sequer,
salvo se em boa verdade
são os ff da cidade
um furtar, outro foder.
Se entrarmos de cabeça pelas janelas das redes sociais chegaremos, sem rodeios, ao Brasil de Gregório de Matos. Ou, do mesmo modo, e em contraponto (musical), ao lermos Gregório revisita(re)mos o país falastrão, mesquinho e bisbilhoteiro em roupas vil viril varonil. Gregório, entre poucos, não era preso aos conchavos da língua. Poema para juiz, delegado, pastor, sacristão, almirante, general e capitão. Com o poeta bahiano, percebemos que o Brasil é uma constante (ia dizer triste, mas me controlo) reescritura de si mesmo.
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A educação pela pedra
João Cabral de Melo Neto
Uma educação pela pedra: por lições;
Para aprender da pedra, frequentá-la;
Captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
Ao que flui e a fluir, a ser maleada;
A de poética, sua carnadura concreta;
A de economia, seu adensar-se compacta:
Lições da pedra (de fora para dentro,
Cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
E se lecionasse, não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
Uma pedra de nascença, entranha a alma.
Os versos de João Cabral são um elo com a rudeza da vida. De um cantar que desdenha e não pula para fora da garganta. A dor que alimento é. O seco ora seco. A pedra, por sua vez, em fricção com a que aconselhou Euclides. O sertão é seco, duro, ignoto, desértico, e a chuva, amparada pelo advérbio, o transforma no paraíso. Os versos empunham o Brasil que só não é porque nunca quiseram que fosse.
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Conheço vocês pelo cheiro
Ricardo Aleixo
Conheço vocês
pelo cheiro,
pelas roupas,
pelos carros,
pelos anéis e,
é claro,
por seu amor
ao dinheiro.
Por seu amor
ao dinheiro
que algum
ancestral remoto
lhes deixou
como herança.
Conheço vocês
pelo cheiro.
Conheço vocês
pelo cheiro
e pelos cifrões
que adornam
esses olhos que
mal piscam
por seu amor
ao dinheiro.
Por seu amor
ao dinheiro
e a tudo que
nega a vida:
o hospício, a
cela, a fronteira.
Conheço vocês
pelo cheiro.
Conheço vocês
pelo cheiro
de peste e horror
que espalham
por onde andam
– conheço-os
por seu amor
ao dinheiro.
Por seu amo
ao dinheiro,
deus é um
pai tão sacana
que cobra por
seus milagres.
Conheço vocês
pelo cheiro.
Conheço vocês
pelo cheiro
mal disfarçado
de enxofre
que gruda em
tudo que tocam
por seu amor
ao dinheiro.
Por seu amor
ao dinheiro,
é com ódio
que replicam
ao riso, ao gozo,
à poesia.
Conheço vocês
pelo cheiro.
Conheço vocês
pelo cheiro.
Cheiro um e
cheirei todos
vocês que só
sobrevivem
por seu amor
ao dinheiro.
Por seu amor
ao dinheiro,
fazem até das
próprias filhas
moeda forte,
ouro puro.
Conheço vocês
pelo cheiro.
Conheço vocês
pelo cheiro
de cadáver
putrefato que,
no entanto,
ainda caminha
por seu amor
ao dinheiro.
E para fechar, um do mineiríssimo Ricardo Aleixo. Esse é o poema que, pela sua imbricação estética e sonora, sempre me dá medo de tocá-lo, e o faço (ao menos pensando ser) com leveza e cuidado. Nele, o deserto das palavras se alivia e se recrudesce, ao mesmo tempo, com a retomada dos versos “conheço vocês pelo cheiro” e “por seu amor ao dinheiro”, que, dando ritmo, reascende o poema e te espreme o país contra o peito. Num diálogo com a cinematografia contemporânea, na despedida em riste, soluçando, a pergunta não pode ser mais uma afronta, quem são os parasitas?