Notícias de outras ilhas: Fred Spada
O poeta Fred Spada (Foto: Nayara Moreira)
Fred Spada (1982) é mineiro de Belo Horizonte, mas reside em Juiz de Fora desde 1990. É poeta, tradutor e editor da Gralha Edições. Possui formação em Letras, com doutorado em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio. Publicou os livros Arqueologias do olhar (Funalfa, 2011), Coleção de ruínas (Macondo, 2014) e Breve itinerário de uma não viagem (Megamíni/7Letras, 2019).
Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena – indica poemas de Leila Danziger, Hans Magnus Enzensberger e Konstantinos Kaváfis. A seção é curada por Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário do poeta abaixo.
Deixo desta ilha três poemas que, a seu modo, falam também de nosso tempo, do olhar que a ele apontamos quando miramos para além de nós próprios. Isolar-nos pode nos dar a falsa impressão de ter a visão turva, mas a literatura – e, em especial, a poesia – há de servir-nos de carta geográfica para guiar nossos dias, nosso retorno à nossa Ítaca particular, iluminada. E “uma vaga lembrança” faz-nos continuar, porque nos impele à vida.
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Paisagem para Armando Reveron
Leila Danziger
Quem deixa o subterrâneo
enfrenta o desastre do excesso de luz.
A cidade se dissolve em clarões
que esmagam tudo o que se ergue ou apenas passa.
Quando a luz corrói a superfície dos sólidos
resta-nos a deriva por uma película gasta e cansada.
Procuro um abrigo na paisagem arruinada de luz.
em Ano novo, 7Letras, 2016
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Uma vaga lembrança
Hans Magnus Enzensberger
Nos nossos debates, companheiros,
me parece às vezes
havermos esquecido algo.
Não é o inimigo.
Não é a linha.
Não é a meta.
Não consta do Breve Curso.
Se nunca o tivéssemos sabido
não haveria luta.
Não me perguntem o que é.
Não sei como se chama.
Apenas sei que é
o mais importante
aquilo que esquecemos.
em Eu falo dos que não falam, Brasiliense/Instituto Goethe, 1985, trad. Kurt Scharf e Armindo Trevisan
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Ítaca
Konstantinos Kaváfis
Quando, de volta, viajares para Ítaca,
roga que tua rota seja longa,
repleta de peripécias, repleta de conhecimentos.
Aos Lestrigões, aos Ciclopes,
ao colérico Posêidon, não temas:
tais prodígios jamais encontrarás em teu roteiro,
se mantiveres altivo o pensamento e seleta
a emoção que tocar teu alento e teu corpo.
Nem Lestrigões, nem Ciclopes,
nem o áspero Posêidon encontrarás,
se não os tiveres imbuído em teu espírito,
se teu espírito não os suscitar diante de ti.
Roga que tua rota seja longa,
que, múltiplas, se sucedam as manhãs de verão.
Com que euforia, com que júbilo extremo
entrarás, pela primeira vez, num porto ignoto!
Faze escala nos empórios fenícios
para arrematar mercadorias belas:
madrepérolas e corais, âmbares e ébanos
e voluptuosas essências aromáticas, várias,
tantas essências, tantos arômatas, quantos puderes achar.
Detém-te nas cidades do Egito – nas muitas cidades –
para aprenderes coisas e mais coisas com os sapientes zelosos.
Todo o tempo em teu íntimo Ítaca estará presente.
Tua sina te assina esse destino,
mas não busques apressar tua viagem.
É bom que ela tenha uma crônica longa, duradoura,
que aportes velho, finalmente, à ilha,
rico do muito que ganhaste no decurso do caminho,
sem esperares, de Ítaca, riquezas.
Ítaca te deu essa beleza de viagem.
Sem ela não a terias empreendido.
Nada mais precisa dar-te.
Se te parece pobre, Ítaca não te iludiu.
Agora tão sábio, tão plenamente vivido,
bem compreenderás o sentido das Ítacas.
em Poemas, Cosac Naify, 2012, trad. Haroldo de Campos