Notícias de outras ilhas: Eduardo Sterzi

Notícias de outras ilhas: Eduardo Sterzi
O escritor e professor Eduardo Sterzi (Foto: Divulgação)

 

Eduardo Sterzi é escritor e professor de Teoria Literária na Unicamp. Publicou, entre outros, os livros Prosa (2001), Aleijão (2009) e Maus poemas (2016). Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena -, indica dois poemas que leu recentemente em revistas e outro que encontrou num livro comprado num sebo pela internet. Leia abaixo os poemas de Krystyna Dąbrowska, Bíon de Esmirna e Jomard Muniz de Britto e o comentário do autor.

 

Quando se trata de poesia, revistas são tão ou mais importantes do que livros ― é por elas que a vida dos poemas costuma começar, é nelas que a face poética de uma época ou geração vai se desenhando poema a poema. E é por elas também que, como no caso dos poemas aqui transcritos, nos chegam traduções de versos que antes desconhecíamos, tantas vezes escritos em línguas a que não temos acesso direto, como é o caso (meu caso, com estes poemas) do polonês ou do grego antigo ― e que só muito dificilmente nos alcançariam em forma de livros, sobretudo num mercado editorial, como se diz, em retração (situação que certamente não deve melhorar em época de pandemia e ruas esvaziadas). Os editores de revistas literárias ou universitárias, porém, jamais ligaram muito para o tal mercado ― a não ser num país como os Estados Unidos, que transformou a produção e publicação de papers em negócio multimilionário, para vergonha de quem topa entrar nesse jogo. Já os editores de revistas que me interessam fazem, muitas vezes com dinheiro do próprio bolso, apenas o que acham que têm de fazer, não por alguma obrigação ética ou missão cultural (com tudo que isso sempre tem de auto-ilusão), mas imbuídos talvez por aquele impulso algo insensato bem resumido por João Cabral de Melo Neto, ele mesmo editor a fundo perdido de uma revista literária (O cavalo de todas as cores, feita com o português Alberto de Serpa): “Fazer o que seja é inútil. / Não fazer nada é inútil. / Mas entre fazer e não fazer / mais vale o inútil do fazer”.

É em homenagem a quem, apesar de tudo (e esse tudo só aumenta, sempre), preferiu fazer a não fazer que transcrevo aqui o poema da polonesa Krystyna Dąbrowska, em tradução de Piotr Kilanowski. “A agência de viagens” se encontra no sexto número da revista Lavoura, publicada em janeiro deste ano de peste, dentro de um dossiê de traduções organizado pela poeta Francesca Cricelli (a revista, por sua vez, é editada por André Balbo, Arthur Lungov e Lucas Verzola). Toda poesia é, em alguma medida, radicalização dos usos da linguagem em direção aos seus desusos e, portanto, expressão da angústia humana diante da morte (morte onde cessa toda comunicação, e por isso mesmo insistimos ainda, dentro dela, delas, morte e poesia, em nos comunicar, já com fantasmas ― e como fantasmas). Dąbrowska repropõe essa experiência em alguma medida comum a todos os poetas (e a todos os leitores de poesia) na forma de uma metáfora fabulosa, o poeta como agência de viagens para os mortos. Pensei, relendo agora este poema, que dá para revisitar, a partir dele, toda uma série de textos poéticos que tratam, de uma maneira ou de outra, do convite à viagem, tópos a um só tempo antigo e moderno (da Odisseia a Kaváfis, passando por Rimbaud e Baudelaire, chegando a tantos contemporâneos nossos), como também, muito especificamente, em outra chave, um poema como «Morte no avião», de Drummond, que me parece ver a mesma questão de uma perspectiva, em alguma medida, oposta e complementar à de Dąbrowska.

Em outra revista, esta eletrônica e universitária, Belas Infiéis, do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da UnB, encontrei o fragmento IX, de Bíon de Esmirna, em versão de Alessandro Rolim de Moura. Bíon viveu e escreveu na passagem do século II para o século I a.C. Da morte passamos a Eros ― mas são assim tão diversos?

O último poema aqui transcrito vem da Terceira aquarela do Brasil, livro que o pernambucano Jomard Muniz de Britto publicou em 1982. Enquanto existir Brasil, temo que será um poema justo na expressão de nosso espanto com o abismo que somos. Mais uma vez, penso num paralelo drummondiano, naquele «Hino nacional» de Brejo das almas, que se encerra com uma constatação brutal e uma pergunta sem resposta, como são todas as perguntas dirigidas aos mortos: “Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”. O poema-jorro de Jomard vem de dentro dessa inexistência. É o próprio abismo (“o brasil não é o meu país: é meu abismo”) que aqui fala, ou grita, ou canta ― tanto faz. Tanto. Faz.

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A agência de viagens

Krystyna Dąbrowska 

Sou uma agência de viagens para os mortos,
organizo para eles voos para os sonhos dos vivos.
Vêm até mim personalidade famosas, como Heráclito,
para visitar um escritor apaixonado por ele,
mas também mortos não conhecidos amplamente ― como um agricultor da aldeia Wasily,
que quer aconselhar sua mulher a respeito da criação de coelhos.
Às vezes uma família de muitas gerações aluga um avião
e pousa na testa do último descendente,
lido também com os assassinados,
que, cursando frequentemente os sonhos dos sobreviventes,
juntam pontos no programa frequent flyer.
Não nego meus serviços a ninguém.
Encontro os melhores roteiros
e me culpo quando um jovem rapaz,
para chegar ao sonho da sua namorada,
precisa voar com uma conexão no sonho de uma dona que ronca.
Ou quando as condições do tempo provocam um pouso de emergência
e o morto liga: faça algo,
fiquei preso no sonho de uma criança apavorada!
Acidentes assim são um estresse e um desafio para mim,
uma pequena agência com grandes ambições ―
pois embora não tenha ingresso nem para o mundo dos mortos e
nem para os sonhos alheios,
é graças a mim que eles se encontram.

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Fragmento IX

Bíon de Esmirna

As Musas não têm medo do selvagem Eros,
Mas de paixão o amam, seguem-no de perto.
Portanto, se alguém canta sem amor na alma,
Fogem dele e não querem nada lhe ensinar;
A quem se agita em Eros e faz doce canto,
Para ele apressadas correm todas elas.
De que o dito é verdade pra todos atesto:
Se eu canto qualquer um, homem ou um dos deuses,
A língua já gagueja, não mais canta bem;
Mas quando é para Eros ou para meu Lícidas,
Da minha boca flui uma voz exultante.

***

Terceira aquarela do Brasil

Jomard Muniz de Britto 

o brasil não é o meu país: é meu abismo. o terreiro de minhas, nossas contradicções. é meu câncer coletivo e a força luminosa da escuridão. é nosso discurso interrompido, sufocado e arrebentador. o brasil não é o meu país: é meu veneno. é a miséria que nenhum milagre ocultou. não é a esperança discreta mas concreta e escandalosa de que tudo (ainda) pode acontecer para melhor. é a dificuldade de conscientização diante de tantos séculos de escravismo colonial. o brasil não o meu país: é meu anti-discurso. são ideias e traumas dentro e fora do lugar. são corpos em tempo de fome, mesmo assim luzindo de paixão. é o ódio latindo no peito dos poderosos e seus pacotões pesadíssimos para nós. são, apesar de, todos os projetos de democracia sem adjetivos de importação ou tapeação. o brasil não é o meu país: é nossa esquizofrenia. é o medo de sempre doendo e até anestesiando. é o gozo de sempre roçando e até nos enganando. é o carnaval no futebol das religiões. é o terror de outrora ainda agora despedaçando mente e culhões. é a demora no jeitinho de esperar sem desespero. são os rasgos de genialidade no mar de tanta imbecilidade. é tudo que nos divide, nos sacaneia e nos diversiona. o brasil não é o meu país: é um videotape de horror. é cinco mil vezes favelas. é cincoenta mil terras em transe. são os boias-frias em trânsito. são os trâmites da cultura oficiosa. é o neocapitalismo de sampa. é a boca do lixo luxuriosa. é a confiança, nem tão ingênua como se propala, das classes oprimidas, reprimidas, deprimidas, proletarizadas, encarceradas, ofendidas e humilhadas. é a dependência corroendo tudo para nada. o brasil não é o meu país: é nosso buraco cada vez mais embaixo do outro buraco. é a luta dos severinos da vida contra os severianos da indústria cultural. são florestas devastadas e enchentes arrazadoras. dores anônimas de habitantes do anonimato. o índio sem apito. o negro aflito. o branco ― quem sabe? ― de consciência em conflito. as minorias ensaiando o grito. os maiorais passando o pito. é a rima pobre da prosa nossa de todo dia é dia d de poesia e azia e delito. o brasil não é o meu país: é nosso câncer circular cotidiano coisificado no circuito do abismo para a alegoria das calmarias.


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