Notícias de outras ilhas: Diego Vinhas

Notícias de outras ilhas: Diego Vinhas
O poeta Diego Vinhas (Foto: Arquivo pessoal)

 

Diego Vinhas nasceu em Fortaleza em 1980 e é autor de Primeiro as coisas morrem (2004), Nenhum nome onde morar (2014) e Corvos contra a noite (2020), todos pela editora 7Letras.

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena –, indica poemas de Renato Mazzini, Simone Brantes e Carlito AzevedoA curadoria é de Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário do poeta abaixo.

 

Estamos fincados em um tempo de interrupção. Por um lado, argumenta-se pelo lado bom de se escancarar (mas não esteve sempre escancarado?) o que há de frágil no dogma (e grosso modo todos os dogmas são frágeis, senão não precisariam se esconder por trás da blindagem contra questionamento onde se sustenta a própria definição de dogma) da lógica da produção desenfreada – já que o mundo literalmente parou. Só que essa sensação de guerra invisível, silenciosa, que cobre de medo e paralisia até o afeto de um abraço, de se misturar na multidão, isso tudo, na minha cabeça, martela duas palavras: fragilidade (e também a beleza que há nisso) e estranhamento (e também a beleza que há nisso). E em momento assim há um poema-mantra do Horácio Dídimo que gosto de ecoar dentro da caixa craniana: as coisas não acontecem/como a gente quer// nem mesmo como a gente/não quer// as coisas nunca pedem/a nossa opinião. Mas, para a conversa agora, gostariam de deixar três que tocam no absurdo, na sinuosidade dos acontecimentos, que começam sempre nas circunstâncias mais simples, e implodem a necessidade de certezas (ou só expõem seus furos) na nossa cabecinha mimada de sapiens. Do Renato Mazzini, que tem um livro potente, ainda inédito, chamado O Último Verão de Nossos Inimigos, com diversos poemas que poderiam estar aqui (e versos como Nosso medo de morrer é uma iguaria muito apreciada e estamos cansados. Não há uma vista de pinheiros através da janela e estamos cansados. Que bonito e entediante esporte é o fingimento e estamos cansados. Nosso cabelo escasseando é um símbolo da melancolia deste século e estamos cansados. Gostamos do cheiro universal de frango assado aos domingos e estamos cansados) escolhi “Nóstromo”, pelo que tem de espanto e cotidiano. Da Simone Brantes, “Entropia”, que integra, creio, seu próximo livro, e coloca, abrupta e delicadamente (e de modo que tais noções nem parecem contraditórias) a linha que une e rompe as nossas ações, e que nos supera. E, por fim, do Carlito Azevedo, “Pálido Céu Abissal”, poema que, confesso, já segurou algumas pontas para mim em outros momentos, e, além de ser de um dos caras fundamentais na minha formação, resume perfeitamente tudo o que tentei (falhando, espero, não tão miseravelmente) dizer até aqui: a desconexão absoluta de todas as falas do mundo, de todos os sonhos do mundo.

***

Nóstromo

Renato Mazzini

Quebrada a combinação,
o que restou no cofre
entre mímicas involuntárias
de falas e rostos
e filmagens mentais em 35mm,
foi a lembrança detalhada
de todo o percurso de dor
e lesões oculares.
De uma madrugada de
tempestade em que, abre aspas,
os relâmpagos tentavam comunicar
alguma coisa, fecha aspas, até
acordar abraçado
a um travesseiro em pedaços,
os sistemas aparentemente
incoerentes entre si, insistindo
em distribuir a seguinte
informação, abre aspas, talvez
você desconheça a identidade
do verdadeiro inimigo,
fecha aspas, ou, na primeira
versão que interpretamos,
as vidraças e eu, abre aspas,
o som não se propaga no vácuo,
mas realmente deveria, fecha aspas.
Isso soma mais algumas dúvidas
à mente cansada que
acorda, num escuro quase perfeito,
machucado apenas
por algumas flechas de luz
vazando os tacos da janela de
madeira, e não havendo
energia elétrica nem para o
ferro de passar, concluir que
talvez fosse melhor,
abra aspas, reorganizar todos
os pensamentos, fecha aspas,
antes de inalar a primeira carga
do dia de ar aos pulmões e ficar,
enquanto acende uma boca
de fogão com o último fósforo
não-molhado, pensando sobre
a microexasperação
de cada coisa.

***

Entropia

Simone Brantes

Há uma teoria que afirma
toda iniciativa de pôr ordem
às coisas
o simples ato de impor
um pouco de ordem
à desordem
que toda manhã
impera
no quarto
provoca uma
nova desordem
apenas momentaneamente
imperceptível
sob os lençóis estendidos
sob os travesseiros lado a lado dispostos
sob os papéis recolhidos e empilhados
sob os móveis livres da poeira
sob a ausência dos copos d’água vazios
e borra de café no fundo das xícaras
Sob as roupas recolhidas dobradas ou postas para lavar
sob tudo isso segue a desestabilização da ordem
talvez num canto (da sua perspectiva) mais remoto do planeta
ele seja a mínima, a nano-ínfima gota que falta
para o terremoto que arrasa o Nepal
para o tsunami que arrasa a costa da Indonésia
para o desaparecimento do avião sobre o Oceano Índico
para o avanço irresistível da mais avançada e mais tenebrosa fase
[do capital
para o sequestro da criança
para o estupro da menina pelos colegas de escola
para a eleição do mais abjeto Congresso Nacional
e mesmo para os seus próprios pensamentos
sujos e inconfessáveis
Talvez se pague um preço surreal por esse quarto arrumado
em que você se senta esperando escrever
quem sabe algo que você possa
da sua perspectiva
chamar de poema

***

Pálido Céu Abissal

Carlito Azevedo

Que não nos protege,
é antes cúmplice, ou mentor
intelectual dessas ruínas,
de nossas mentes estropiadas.
Ao passar por certas casas e ruas
suburbanas, ocorre às vezes
de nos depararmos com algo
que brilha deslumbrante e dissimétrico,
e nos comove a ponto de nos
perguntarmos se de sua aparição
escandalosa, sua cauda
luminosa de átomos e vazio,
poderão surgir algum dia
moças asseadas em vestidos
de flores, conduzindo pela
mão crianças bem penteadas
para a Escola Municipal,
o Sonho Municipal.
Parei um dia em uma dessas
praças e, deitado sobre a
grama, me pus a escutar a
desconexão absoluta de
todas as falas do mundo, de
todos os sonhos do mundo.
Ao levantar-me para buscar
um pouco de água no tanque
vazio vi (me encarava)
uma ratazana que ainda
assim me lembrou
Debra Wingers
abandonada no deserto.


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