Notícias de outras ilhas: Diana Junkes
A poeta e crítica literária Diana Junkes (Foto: Arquivo pessoal)
Diana Junkes é poeta e crítica literária. Nasceu em São Paulo num junho gelado, em 1971. É professora de literatura na Universidade Federal de São Carlos, onde também coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas Sobre Poesia e Cultura. Dedica-se ao estudo da poesia brasileira contemporânea, tema sobre o qual já publicou artigos e ensaios e, particularmente, à obra de Haroldo de Campos. Dentre suas publicações em livro, destaca-se As razões da máquina antropofágica: poesia e sincronia em Haroldo de Campos (Unesp, 2013). Como poeta, publica em revistas eletrônicas e blogs e é autora de Clowns cronópios silêncios (Urutau, 2017), Sol quando agora (Urutau, 2018) e Asas plumas marcam (Laranja Original, 2019).
Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena – indica poemas de Carlos Drummond de Andrade, Wislawa Szymborska e Paulo Henriques Britto. A seção é curada por Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário da poeta abaixo.
Foi com entusiasmo que recebi o convite de Tarso de Melo para escrever algumas linhas desta ilha onde estou, para esse projeto da Revista Cult. Sim, entusiasmo. Afastando-me um pouco da acepção teológica que essa palavra possui, qual seja, “estar embebido de Deus; ser transportado ao divino”, fixei-me no sentido de preenchimento que ela sugere: no lugar de Deus, coloque-se a poesia, e aí poderão ser entendidas as notícias das ilhas como rito que todos os dias chega a nós para ocupar, com sua volatilidade, uns minutos de nosso tempo; tempo este que, paradoxalmente, se alarga e se adensa ao instaurar certa tradição cotidiana de transporte ao poético, talvez um acesso ao sentido, conforme Jean-Luc Nancy; afinal, cada um de nós, como um porto, aguarda as novas que os poemas nas garrafas postas em navegação no site da Cult nos revelarão.
Ilhados em nossas verdades e rotinas domésticas, com nosso eu mais cru, talvez nos deparemos com espelhos quebrados, ecos de vozes que estavam em nossa memória ou, simplesmente, em meio a gestos mínimos e não planejados, experimentemos a plenitude da própria companhia, velhos discos e livros, o olhar querido dos que dividem o teto, a saudade dos olhares distantes. Em perspectiva menos solar, a ínsula pode, para alguns, dar a ver o esfacelamento do que, nos lares, já era ruína e a vida fora da casa impedia de cair de vez; sem a válvula de escape do “tenho que ir”, “vou trabalhar”, “viajo amanhã”, “vou correr no parque” nada salvará as rimas ou as relações. Quaisquer que sejam os alísios sobre as ilhas, quando esse terrível pesadelo da pandemia arrefecer – vai demorar a passar – não seremos os mesmos, as cicatrizes nos farão melhores, algumas feridas abertas doerão. Não seremos os mesmos, nem o planeta.
Mas de nossos refúgios aquecidos e relativamente infensos às consequências econômicas da crise, agravadas pela questão da saúde, vemos arquipélagos inteiros sucumbirem. Não há enjambement para ocultar a monstruosa desigualdade de renda e a injustiça social que a Covid-19 denuncia; restam os despenhadeiros do verso, as distopias, os poemas pós-utópicos. Podemos muito pouco de nossas ilhas, do arquipélago que formamos com nossos pares. Entretanto, nesse pouco reside, a meu ver, talvez do alto da minha ingenuidade ou credulidade socialista, uma arma poderosa: a confiança no poder transformador dos ritos, das formas, da linguagem da arte, da cultura; a confiança na eficácia de sua transmissão pelos canais que se nos apresentam, como essas “Notícias de outras ilhas”, mais que permanentes, pregnantes. Volto a crer no devir. Volto a me dizer que é preciso crer no devir, nas ações, nas instituições, na solidariedade, na democracia, nos afetos partilhados, nas palavras. Sigo, pois, entusiasmada, e digo a mim mesma, nos tantos monólogos a que o isolamento me obriga, que o princípio-realidade que agora nos toma será, novamente, convertido em princípio-esperança, ao contrário do que diz Haroldo de Campos, em seu conhecido ensaio “Poesia e modernidade”. Talvez essa seja a nossa única chance. Não a conversão em si, pois pode demorar, mas a crença de que a utopia retornará.
Assim, três são os poemas que minhas reminiscências convocam: “O elefante”, de Carlos Drummond de Andrade, que considero um dos mais belos do poeta – um elogio ao recomeço, à luta, mesmo que tímida e feita de pano e afeto, “perdão e carícia”, algodão e poesia, publicado no político Rosa do povo, de 1945. Na sequência, o importante poema de Wislawa Szymborska, “Fim e começo” (Koniec i poczqtec, publicado no livro homônimo, em 1993, na Polônia), que apresento na tradução de Regina Przybycien. Em meu movimento de leitura, transformo as vozes desses poemas/poetas que tecem (a)manhãs, em cantos que um galo antes, embora na poeta polonesa, o recomeço seja ativo, reparador/redentor em sentido benjaminiano, o que talvez não se coloque exatamente desse modo no universo drummondiano.
O terceiro poema é, sem dúvida alguma, um de meus favoritos, pelo que nomeia de mim para mim, em sua universalidade; algo que flutua entre a constatação do que somos, a impossibilidade de sermos outros do que somos e a percepção de que o poético está nesse hiato entre o que potencialmente poderíamos ser e a realização da vida, da experiência, daquilo que nos “escolhe mas não escolhemos”. O poético é, portanto, o lance de dados, o contingente. E quanto a nós, não somos nada do que quiséramos ter sido; nada a não ser o “eu que eu sou”. É um poema sem título, um soneto, apenas numerado (VII), de Paulo Henriques Britto, que está na seção Biographia Literária, composta por oito poemas, do livro Formas do nada. Estes poemas são a fotografia da minha ilha interior, enquanto escrevo, resultado do que o oceano ao redor me força pensar.
***
O elefante
Carlos Drummond de Andrade
Fabrico um elefante
de meus poucos recursos.
Um tanto de madeira
tirado a velhos móveis
talvez lhe dê apoio.
E o encho de algodão,
de paina, de doçura.
A cola vai fixar
suas orelhas pensas.
A tromba se enovela,
é a parte mais feliz
de sua arquitetura.
Mas há também as presas,
dessa matéria pura
que não sei figurar.
Tão alva essa riqueza
a espojar-se nos circos
sem perda ou corrupção.
E há por fim os olhos,
onde se deposita
a parte do elefante
mais fluida e permanente,
alheia a toda fraude.
Eis o meu pobre elefante
pronto para sair
à procura de amigos
num mundo enfastiado
que já não crê em bichos
e duvida das coisas.
Ei-lo, massa imponente
e frágil, que se abana
e move lentamente
a pele costurada
onde há flores de pano
e nuvens, alusões
a um mundo mais poético
onde o amor reagrupa
as formas naturais.
Vai o meu elefante
pela rua povoada,
mas não o querem ver
nem mesmo para rir
da cauda que ameaça
deixá-lo ir sozinho.
É todo graça, embora
as pernas não ajudem
e seu ventre balofo
se arrisque a desabar
ao mais leve empurrão.
Mostra com elegância
sua mínima vida,
e não há cidade
alma que se disponha
a recolher em si
desse corpo sensível
a fugitiva imagem,
o passo desastrado
mas faminto e tocante.
Mas faminto de seres
e situações patéticas,
de encontros ao luar
no mais profundo oceano,
sob a raiz das árvores
ou no seio das conchas,
de luzes que não cegam
e brilham através
dos troncos mais espessos.
Esse passo que vai
sem esmagar as plantas
no campo de batalha,
à procura de sítios,
segredos, episódios
não contados em livro,
de que apenas o vento,
as folhas, a formiga
reconhecem o talhe,
mas que os homens ignoram,
pois só ousam mostrar-se
sob a paz das cortinas
à pálpebra cerrada.
E já tarde da noite
volta meu elefante,
mas volta fatigado,
as patas vacilantes
se desmancham no pó.
Ele não encontrou
o de que carecia,
o de que carecemos,
eu e meu elefante,
em que amo disfarçar-me.
Exausto de pesquisa,
caiu-lhe o vasto engenho
como simples papel.
A cola se dissolve
e todo o seu conteúdo
de perdão, de carícia,
de pluma, de algodão,
jorra sobre o tapete,
qual mito desmontado.
Amanhã recomeço.
Em Poesia 1930-62, edição crítica, Cosac&Naify, 2012
***
Fim e começo
Wisława Szymborska
Depois de cada guerra
alguém tem que fazer a faxina.
Colocar uma certa ordem
que afinal não se faz sozinha.
Alguém tem que jogar o entulho
para o lado da estrada
para que possam passar
os carros carregando os corpos.
Alguém tem que se atolar
no lodo e nas cinzas
em molas de sofás
em cacos de vidro
e em trapos ensanguentados.
Alguém tem que arrastar a viga
para apoiar a parede,
pôr a porta nos caixilhos,
envidraçar a janela.
A cena não rende foto
e leva anos.
E todas as câmeras já debandaram
para outra guerra.
As pontes têm que ser refeitas,
e também as estações.
De tanto arregaçá-las,
as mangas ficarão em farrapos.
Alguém de vassoura na mão
ainda recorda como foi.
Alguém escuta
meneando a cabeça que se safou.
Mas ao seu redor
já começam a rondar
os que acham tudo muito chato.
Às vezes alguém desenterra
de sob um arbusto
velhos argumentos enferrujados
e os arrasta para o lixão.
Os que sabiam
o que aqui se passou
devem dar lugar àqueles
que pouco sabem.
Ou menos que pouco.
E por fim nada mais que nada.
Na relva que cobriu
as causas e os efeitos
alguém deve se deitar
com um capim entre os dentes
e namorar as nuvens.
Em Poemas, tradução Regina Przybycien, Companhia das Letras, 2012
***
VII
Paulo Henriques Britto
Nada disso foi do jeito que eu quis.
Se fosse como eu quis, não haveria
de ser tão sofrido, tão infeliz.
Mas eu – o eu que sou – eu não seria.
Assim, não me lamento. Até me sinto
como quem tem não o que foi pedido,
e sim o que, guiado pelo instinto,
não pelo querer, teria querido.
O que de mais duro a vida me deu
– que dura mais quanto mais me custou
dele me acostar, e torná-lo meu –
o que não escolhi, mas me escolheu,
é o que, ao fim e ao cabo, mais eu sou.
Não é o eu que eu me quis. Mas sou eu.
De Biographia Literaria, em Formas do nada, Companhia das Letras, 2012