Em “Os Visitantes”, Bernardo Kucinski retoma eventos trabalhados em “K”

Em “Os Visitantes”, Bernardo Kucinski retoma eventos trabalhados em “K”

Bernardo Kucinski, jornalista de sólida carreira, estreou na ficção aos 74 anos com o romance K.: relato de uma Busca. Publicado em 2011 por uma editora pequena, o livro atingiria raro reconhecimento, chegando a se tornar uma das obras indispensáveis da literatura brasileira contemporânea. Não por acaso, alguns anos depois, a segunda edição sairia por uma editora de maior alcance.

por Renato Tardivo 

BUSCA INTERMINÁVEL

O romance K.: relato de uma busca trata da procura de um pai, o escritor de iídiche chamado K., pela filha desaparecida na época da ditadura militar, uma jovem professora do Instituto de Química da Universidade de São Paulo. Logo no início, o autor escreve: “Caro leitor: Tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu.” Ou seja, os limites entre realidade e ficção são postos à prova.

Muitas são as menções a eventos e personagens reais, embora a forma não deixe dúvidas de que se trata de uma obra de ficção. No primeiro capítulo, é Kucinski quem escreve, referindo-se em primeira pessoa ao desaparecimento da irmã. Nos capítulos seguintes, o narrador em terceira passa a contar a história quase sempre do ponto de vista de K., o pai.

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Foto Carolina Ribeiro

O absurdo, kafkiano por excelência, pode ser formulado da seguinte forma: os militares não necessitavam de mandado de prisão, não assumiam as prisões e, ainda, sumiam com os presos. Resultado: “Também os sobreviventes daqui estão sempre a vasculhar o passado em busca daquele momento em que poderiam ter evitado a tragédia e por algum motivo falharam.” Carregam um peso que não lhes pertence.

Enredado nessa lógica absurda, a busca (infindável) de K. pela verdade talvez deixe de ser pela filha desaparecida e passe a ser pelos mecanismos que levaram ao fim trágico dela. Entretanto, como a dor da tortura, a vulnerabilidade de parentes de desaparecidos diante de informações é eterna. Pode-se aprender a lidar com ela, mas em um “sistema repressivo ainda articulado” ela nunca cessa.

O Brasil ainda vive desdobramentos desse absurdo, pois majoritariamente insiste no lema da reconciliação. Contudo, só pode haver reconciliação quando os traumas são reconhecidos, assumidos. Em direção oposta, exercitamos um gozo perverso: apostamos na cicatrização da ferida que sequer foi assumida. Nesse caso, como falar em reconciliação?

VISITANTES

Na novela recém-publicada Os visitantes, o autor retoma eventos do livro anterior. Composto por narrativas breves, que lembram contos ou crônicas, o narrador-personagem é o autor de K.: relato de uma busca. Um tanto ressentido com a falta de repercussão do romance – o que, sabemos, é o contrário do que ocorreu –, ele recebe em seu apartamento a visita de pessoas que o questionam a respeito da veracidade do que fora narrado no romance, ao que o escritor, de um ou outro modo, se defende dizendo: “É ficção”.

As conexões sutis entre um capítulo e outro, e o fato de abrangerem a mesma temática, fazem com que o gênero da obra seja novela, e não uma coletânea de contos, por exemplo. Mas, conquanto as narrativas fluam, o ponto alto do livro consiste mesmo em retomar a fronteira entre realidade e ficção – ou História e ficção – num inventivo jogo metalinguístico.

A questão do reconhecimento, presente no romance, reaparece na novela: pessoas, ao se reconhecerem no romance K., cobram do autor o compromisso com a verdade, exigem provas, perguntam sobre a origem desse ou daquele personagem. Há, aqui, também algo de absurdo kafkiano: pessoas que, ao se reconhecerem, não se reconhecem.

Pacientemente, o narrador recebe cada um dos visitantes atento ao que eles têm a dizer. Chega inclusive a reconhecer alguns equívocos do romance, que, afirma, poderá alterar na segunda edição (no tempo narrativo de Os visitantes, a segunda edição de K. ainda não havia saído). Em um exercício de abertura radical à alteridade, o escritor – e a própria trama – deixa-se ser habitado por aqueles que o procuram.

Da confusão de pontos de vista, dos limites difusos entre realidade e ficção, é a busca pela verdade que segue ocupando papel central. Sobrepondo camadas de ficção, isto é, trazendo a esta nova ficção a ficção anterior, B. Kucinski uma vez mais aborda com ironia a leviandade com que o país (após os trabalhos da Comissão da Verdade) lida com a ditadura militar. Emblemático nesse sentido é o último capítulo (Post Mortem) no qual se revela – e se desmente – o destino trágico da filha de K. e do seu marido.

Enquanto não formos capazes de dar nomes aos nossos traumas, jamais iremos superá-los. Por isso, eles precisam ser sempre lembrados – em vez de banalizados. Com efeito, se a verdade, em sua multiplicidade, se (re)constrói enquanto ficção, o perspectivismo ficcional de B. Kucinski é uma aula de História.

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