Carlos Orfeu, um pequeno mundo das coisas

Carlos Orfeu, um pequeno mundo das coisas
O poeta Carlos Orfeu (foto: Divulgação)

 

“Quem pagava a conta?
Tantas histórias.
Tantas questões.”

Bertolt Brecht, em Perguntas de um operário que lê


 

Devagar escolha-se o poema que tem o segundo maior título, pode ser um começo: o rosto é uma casa que desaba na paisagem. Nessa força e nesse empenho traçados sob uma laceração de vida e mundo [o título é impressionante], há uma imagem que oscila, como transparência, sem nenhuma tipificação, porque há também, ao mesmo tempo, na imagem, uma espécie de ciência do quanto escrever é uma tarefa sem importância, mero descrédito: “é desequilíbrio / na torção da dúvida”. Ao contrário, e sem muito esforço, tem-se a disjunção de que se está diante de um livro de leitor, ou seja, de um livro imenso. Vale tocar a ideia de que imenso remete, de pronto, à desmesura, ao limite impossível, logo, ao impensável. E é esta polissemia desviante do termo que pode reconfigurar e desmontar a exigência hierarquizante de que imenso, por sua vez, esmagaria o pequeno, o simples, o menor e, principalmente, a lição silenciosa contra a categoria imperiosa e ostensiva da totalidade, que determina tanto o objeto quanto o sujeito e que, ainda e cada vez mais, apruma-se diante de um único ponto de vista: o do indivíduo. Ou seja, a totalidade é um descrédito.

O título longo e a imagem fazem parte do livro de Carlos Orfeu, Invisíveis Cotidianos [Patuá, 2020]. O jogo invertido entre substantivo e adjetivo, quase um recurso óbvio e que pode revirar-se num ruído, é muito mais um princípio vigoroso, político, que se evidencia a cada poema: tem-se no jogo um caráter que aponta ao comezinho e seus enfados para salientar alguns mínimos pontos de guerrilha, instantâneos de circunstâncias insurrectas que vêm no exercício de um dia-a-dia de trabalho incluindo-se aí, o tempo inteiro, a vida diante do pensamento que resvala até o poema e no poema como última incidência ou acidente. Tanto que o que aparece, imediatamente, entre rosto – casa – paisagem – desequilíbrio – torção – dúvida, é a percepção de que se está diante de um livro expandido a UM OUTRO, esta escritura rara que liga certas banalidades capturadas a observações mais gerais, orientando o inacabado, o sem mapas, a uma luta sem forma adequada, como já apontara Walter Benjamin: a das imagens.

Basta ver como Carlos retoma a discussão em torno às seriações do rosto, grosso modo entre Ahab [o personagem de Herman Melville, devorador de almas] ou Emmanuel Levinas, “mesurar o infinito”, por exemplo, e propõe o “possível” como infinito, uma esperança. Nessa curva encantada, “iluminação profana”, não é à toa que recupere a fenomenologia de Gaston Bachelard, a “imensidão íntima de todas as coisas”, e a síntese da geografia algébrica e alucinada de Josoaldo Lima Rego, “o múltiplo das pequenas coisas”, recuperações que são as suas epígrafes, para abrir seu livro com um quadrado preto, à esquerda, e no primeiro poema, sépia, à direita do quadrado preto, indicar que se está diante de certa “imobilidade dos rostos // e o inapreensível grito / das coisas insubstituíveis”. O quadrado, a forma fascista e irresoluta, desaparece, é anulada frente a dilação ambivalente dos poemas armados em pequenas séries convulsas: animais, frutas, partes do corpo devoradas pelo trabalho [como os olhos e as mãos], desenhos de uma casa que se afaga num quintal sem planejamento nem coerência, porque “o caos é uma granada de cansaço” [o que desfaz a encenação maquínica da casa de Le Corbusier e que Joaquim Cardozo tomava como insuportável reprojetando-a numa “arquitetura para o homem” entre vizinhança e espaços de partilha e, depois, tomando posição e repulsa à uniformidade melancólica dos conjuntos habitacionais opressores], e objetos em processo de revolta com sensibilidade anarquista e sem a bobagem descarada e hipócrita da gracinha, do gracejo: “na anarquia revoluta / de não serem mais submissos // os objetos / no ápice / do domínio da espécie // racionalizam-se”.

Difícil imaginar que – em tempos tão esgotados, quando a defesa habituada de um realismo convicto e repetitivo cheira a poder – uma experiência tão antiga, como a de uma vida interior atravessada de sonho pode ainda implodir um livro de poemas refazendo esses sentidos, ou seja, os de pensar sobre o que acontece e entender que o sentido dos fatos depende do futuro, não apenas dos passados esquecidos, e que é nesse futuro que mora ou pode morar alguma paixão pelo mundo. Carlos Orfeu leu de William Carlos Williams a Charles Olson, os poetas da Black Mountain College e, principalmente, alguns ditos “objetivistas” como George Oppen e Louis Zukovski e, depois, noutra ponta, Robert Creeley [tão importante para um poeta como Régis Bonvicino, que o traduziu, e que tem exatamente na luta das imagens uma disparidade singular de pensamento com o poema] e o próprio Régis. A partir daí, se não leu, leu melhor ainda: basta ver o poema Anew, de Zukovski, ou Blood from the stone, de Oppen, para entender por onde Carlos se move, mas a seu modo, como se numa decomposição contaminada e circunscrita entre tantas imagens aproximadas a uma vida que se opera num abismo social bélico e, agora, esvaziada por completo nesse país pasmado, parado, assistente de uma perversão sem saídas.

Mas é com Williams [um outro Carlos] que esta decomposição se abastece muito fortemente, em poemas como gato ou carrinho de mão. O poeta americano, repare-se, publicou em Spring and all [1923], The red wheelbarrow; na tradução de José Paulo Paes [1987], O carrinho de mão vermelho: “tanta coisa depende / de um // carrinho de mão // vermelho // esmaltado de água de / chuva // ao lado das galinhas / brancas”. O poema de Carlos Orfeu, carrinho de mão: “carrinho de mão / vermelho // emborcado / parece um besouro / com cimento / incrustado / na casca de ferro / movendo / patas / de / areia / ao / lado / dos tijolos enfileirados”. A presença de uma animalidade mais tensa e faminta, das galinhas laterais para uma aparência de besouro [rosto?], numa beira de sufoco e morte, refaz as especulações acerca de um real sem a modulação idílica do primeiro e com um outro desenho de trabalho: da água da chuva para o cimento e os tijolos em fila. A chuva, se fosse o ponto, a questão, aparece no último fragmento do último poema do livro, o que tem o maior título, também como um animal faminto e enlameado para engolir a casa ou qualquer ideia de casa sem víscera: no rosto que é um quintal é preciso caminhar lento. Em seguida, 2 quadrados pretos que encerram o livro. Diz o fragmento num raro desenho da linha em todo o livro, mais esticada, que respira menos exatamente porque mais longa e numa disposição política diferida, à escuta: “a chuva desce em sua bicicleta de muitas pernas / tempestuosas: com relâmpagos em suas unhas / fareja como animal a réstia de fome grudada / na colher cravada na lama onde também há / sépia de abraços que são o casulo apodrecido / da família partida nos ventos: o quintal abre / sua monstruosa boca esponjosa e vegetal / a chuva fugaz como uma criança exasperada / cava batendo nuvens na língua que é o templo / de tudo que volta em som: palavra e escuta”.

O livro de Carlos Orfeu, o seu trabalho com o poema, é uma rarefação e uma deriva da força contra os procedimentos de “identificação afetiva” [ainda mais num tempo tão ordinário quando o termo afeto é usado numa genealogia vazia, sem a oscilação de sentidos que aponta também para volição, raiva e ódio] e de “indolência do coração”, isto que tanto escraviza e faz sofrer os que são oprimidos para a composição da forma histórica: escravos, camponeses, operários. Uma pequena volta do parafuso: Sobre o conceito de história, Tese 7, Walter Benjamin. Carlos opta, é esta a sua brenha de escrita, em “ver o mínimo do mundo” – está impresso no colofão –, e sofistica o poema ao infinito do limite, esta desmesura, para indicar que, mais do que nunca, ler no autor é apenas dinamitar e reproduzir a falência da cartografada e tola ideia de sucesso. Ler no leitor, este desamparado, gesto, é esticar o inexplicável de sua origem até seu termo, o inexplicável diferido: esta espiral. Não à toa, na fotografia de Carlos Orfeu na orelha do livro, natural e organicamente, ele aparece lendo Cesar Vallejo, que certa vez anotou: “Por el analfabeto a quién escribo”. Este Invisíveis Cotidianos é uma coragem, imensa, que só existe naqueles que lutam contra a miséria do pensamento.

 

Invisíveis cotidianos
Carlos Orfeu
Editora Patuá
R$ 40,00

Manoel Ricardo de Lima é Professor da Escola de Letras e do PPGMS, UNIRIO. Publicou, entre outros, Geografia Aérea [7Letras, 2014], Jogo de Varetas [7Letras, 2012], As mãos [7Letras, 2003/2012], Maria quer o mundo [Edições SM, 2015] e O método da exaustão [Garupa, 2020].


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