Notícias de outras ilhas: Carlito Azevedo
O poeta Carlito Azevedo (Foto: Arquivo Pessoal)
Carlito Azevedo é poeta, autor de Monodrama (7Letras, 2009), e Livro das postagens (7Letras, 2016). Editou por dez anos a revista de poesia Inimigo Rumor. Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena –, indica poemas de Helmut Heissenbüttel, Mariana Vieira e Louise Erdrich. A curadoria é de Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário do poeta abaixo.
Como escreveu Mark Fisher, a ideia de que a arte pode mudar o mundo soa hoje “irremediavelmente ingênua”, e não à toa, afinal 30 anos de neoliberalismo parecem ter nos convencido de que não há alternativa ao modelo dominante, e, no meio disso tudo, a arte estaria condenada ao papel de entretenimento. Mas, como ele mesmo acrescenta, as aparências enganam. E se a poesia achar que não pode ser só isso? Uma fração, minoritária, mas valiosíssima, da arte atual resiste a esse diagnóstico.
O poeta alemão Helmut Heissenbüttel (1921-1996) pratica um tipo de experimentalismo com sua poesia que levou, por exemplo, um poeta como Haroldo de Campos a traduzi-lo e publicá-lo nas páginas da revista de poesia Invenção, porta-voz do movimento concreto.
Mariana Vieira é uma poeta paraibana, torcedora do Treze Futebol Clube de Campina Grande, ou seja, traz a utopia no coração. Seu extraordinário poema aqui reproduzido é dedicado à sua irmã gêmea, Flaviana, e abre seu livro de estreia, Numa nada dada situação.
Copiando dados diretamente da wikipedia, informo aqui que “Louise Erdrich (nascida Karen Louise Erdrich, Little Falls, 7 de Junho de 1954) é uma escritora ojíbua de romances, poesia e literatura infantil com personagens e ambientes dos povos nativos dos Estados Unidos. É membro inscrito do Turtle Mountain Band of Chippewa Indians, um grupo de Anishinaabe (também conhecido por Ojibwe e Chippewa)”. Quanto ao poema aqui reproduzido, em tradução da também poeta Monique Rodrigues Balbuena, digo que bastaria aquela epígrafe, da curandeira dos Crows, para nos sentirmos numa atmosfera poética especial, que passa longe da ideia de arte-entretenimento. Mas ela ainda fez questão de escrever o resto do poema. Ave, Louise!
***
Inventário dos irreeducáveis
Helmut Heissenbüttel
Há os irreeducáveis que acreditam que tudo voltará a ser como antes
Há os irreeducáveis que sabem que nada será como antes mas que agem como se
Há os irreeducáveis que sabem que nada será como antes agem como se e buscam propagar essa ideia
Há os irreeducáveis que sabem que nada será como antes e que de resto não agem como se mas que não entenderam nada
Há os irreeducáveis que entenderam mas que acreditam que tudo voltará a ser como antes e que eles conseguirão se dar bem mais uma vez
Há os irreeducáveis que entenderam mas que não acreditam naquilo que entenderam e crêem que tudo vai mudar
Há os irreeducáveis que sabem que nada será como antes e que entenderam e que no entanto não podem se furtar a esticar esse epílogo a perder de vista
Há os irreeducáveis que agem como se nada tivesse acontecido e aproveitam para curtir e ficar numa boa
Há os irreeducáveis que entenderam e agem como se nada tivesse acontecido e voltam a fazer o que bem querem
Há os irreeducáveis que agem como se nada tivesse acontecido e que entenderam e que sabem que nada será como antes e que voltam a fazer o que bem querem
Irreeducáveis sobrevivem
***
Gêmeas
Mariana Vieira
Aquela que considerávamos
a nossa abóbada etérea
já tinha se expandido
ao limite e talvez
por isso mesmo
e por ser noite
decidimos que sim
por ser exatamente
aquela aventura
e aquela hora
deveríamos sair
precisávamos sair
experimentar uma nova
forma de conexão
agora com a abóbada celeste
contemplar o azul
aquela concha azulada
(o conjunto das coisas já criadas
e tudo que criaríamos juntos)
tão diferente
da sopa transparente
em que ficamos
mergulhadas
não começou tudo ali
naquele salto
duplo twist carpado
que sempre soubemos
(mais intuitivamente impossível)
ser muito importante aprender
aquelas velhas acrobacias
do amor por amor
mas isso já foi muito depois
o encontro que não
podemos chamar
de encontro
por não ser encontro
a miragem do espelho
a mesma casa do tabuleiro
a ideia de sermos duas partes
do mesmo que fomos
durante aproximadamente
cinco, seis, catorze dias após
a fecundação
de sermos outra coisa
e da coisa ser
tudo que somos
e não digo de sermos
um pouco pai
e um pouco mãe
ou um pouco do pai
um pouco da mãe
e de todas que nos
antecederam
um pouco negras, índias
e mulatas
e ainda sermos
além de genética
também história
um tanto portuguesas
holandesas
e um amigo da família
nos chamar de polacas
de tão louras
e um outro de subnutridas
de tão fortes
tudo isso é meio confuso
digo, esta coisa
de ser outra coisa
e de sermos
a mesma matéria
essa força
que une células recém-divididas
em uma massa coesa
e que com um magnetismo
pouco comum
(até pouco compreensível
para alguns)
continua unindo dia
após-dia
década
após-década
duas existências
células queridas,
que bela ideia vocês tiveram
quando se aproveitaram
de uma herança
não tão bem escondida
ou daquela
falha no sistema
que faz tanta coisa fazer sentido
voltemos então
ao começo
ou à pergunta
e quando começou?
no instante preciso
em que se dividia
a primeira célula?
a famosa e necessária
multiplicação celular
a conjectura de Harvey Kliman
a epigenia
que nos deixou
cada uma
dona do par da mão
e do par do pé da outra
e como nos comprovou
aquela radiografia
(de muitos anos depois)
da metade oposta
do maxilar da outra
quando percebemos
o gosto do líquido
que refratava a imagem
ou quando
já não nos incomodavam
as piadas
nem a visão
de tanta imagem
e semelhança
nem mesmo o mesmo vestido
ou a mesma cor do vestido
o começo pode ter sido
essa membrana
que trazia o céu
para tão perto
aquela célula que se desprendeu
e preferiu ser outro coração
a curva da sua sobrancelha
o som da tua risada
que ouvi pela primeira vez
embaixo d’água
o começo, o silêncio, o universo
e todas as galáxias
que em parte vibram
em nós
trabalhando lindamente
para rechear de significados
esse delicioso
pastel
da dupla existência
***
A gente estranha
Louise Erdrich
“Os antílopes são uma gente estranha…
são belos de se olhar, mas são traiçoeiros. Não confiamos neles. Eles aparecem e desaparecem;
são como sombras nas planícies. Por causa de sua grande beleza, rapazes às vezes seguem
os antílopes e se perdem para sempre. E mesmo que esses insensatos se achem
e retornem, eles nunca mais ficam bons da cabeça.”
Pretty Shield, curandeira dos Crows, em transcrição de Frank Linderman.
A noite toda eu sou a corça, respirando
o seu nome num campo congelado,
a pequena névoa da palavra
sendo sempre arrastada diante de mim.
E mais uma vez ele ouviu
e eu fui ardendo
encontrá-lo, o candeeiro
me enche os olhos de um fogo azul;
o coração em meu peito
explode como pedra quente.
Então, jogada feito uma trouxa
na traseira de sua caminhonete,
eu limpo de minha boca
a gosma de morte e sento-me rindo,
às gargalhadas, na minha tumba à grande velocidade.
Segura, fechada em sua garagem,
quando ele afia a faca
e pensa me possuir, assim,
eu venho até ele,
uma bruxa magra e cinza,
em meio às balas que entram e se dissolvem.
Sento-me na casa dele,
tomando café até o amanhecer,
e parto quando o gelo já se avermelha nas calotas,
rastejando de volta a meu corpo de sombras.
O dia todo, dormindo na grama limpa,
eu sonho com aquele que poderia de verdade me ferir.