Notícias de outras ilhas: Beatriz Azevedo
(Foto: Julia Moraes/Folha Imagem)
Beatriz Azevedo é poeta, compositora e performer. Doutora em Artes (UNICAMP) e Mestre em Literatura (USP). Estudou no Mannes College of Music em Nova York e na Sala Beckett em Barcelona. Pesquisadora de Pós-Doutorado UNICAMP / FAPESP. Em 2020 fundou o projeto POESIA.ORG com Sergio Cohn. Escreveu Abracadabra (Demônio Negro, 2019), Antropofagia Palimpsesto Selvagem (Cosac Naify), Idade da Pedra e Peripatético (Iluminuras). Está no LP Garganta 20 poetas brasileiros e no livro Acabou Chorare, com Caetano Veloso e Arnaldo Antunes. Gravou os discos A.G.O.R.A (Biscoito Fino 2019) com Matheus Nachtergaele, Moreno Veloso e Zélia Duncan; antroPOPhagia ao vivo em Nova York no Lincoln Center; e Alegria, com participação de Tom Zé (todos pela Biscoito Fino / Discmedi Europa); Mapa-Mundi e bum bum do poeta (Natasha Records / Nippon Crown Japão). Tem parcerias com Augusto de Campos, Cristóvão Bastos, Moreno Veloso, Vinicius Cantuária e Zélia Duncan; suas composições foram gravadas por Adriana Calcanhotto, Tom Zé, Zé Celso, Zélia Duncan, e outros.
Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena –, indica poemas de Davi Kopenawa e Jean Genet. A curadoria é de Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário da poeta abaixo.
Onde estamos? Travessia e corda bamba potencializam o sentido de estar “entre” um espaço confinado e o cosmos, entre eu e o outro, em movimento, não em uma posição fixa e estática. 2020, vida e morte, retomo minhas traduções de Jean Genet (escrevendo sobre o equilibrista), e as atravesso com o xamã Kopenawa.
Para compreender as cosmologias “não-ocidentais” precisamos colocar sob suspeita as categorias sob as quais nosso pensamento foi estruturado. Essas categorias que nos (de)formaram são também subprodutos da colonização.
Assim como a experiência xamânica, a perspectiva onírica da travessia funâmbula é utópica, procurando criar outros mundos possíveis fora do chão. Funâmbulo caminha pleno no ar em seu espaço de invenção. Não caminhar no chão é também um protesto contra o terreno firme da brutalidade capitalista que obriga a “manter os pés no chão”, a ser “realista”, “sensato”, “produtivo”, “lucrativo”, “racional”.
O chão não é o único território de conhecimento. É possível pensar acima do chão, na corda bamba da poesia, em u – topos, no “sem lugar” da utopia. Ao contrário do sonâmbulo, que sofre de distúrbio do sono, e executa as atividades psicomotoras cotidianas, mas sem consciência, o Funâmbulo está totalmente acordado sobre o arame. O corpo funâmbulo sonha acordado e acorda o sonho em quem o acompanha.
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A QUEDA DO CÉU (trecho)
David Kopenawa
Os brancos nos chamam de ignorantes
apenas porque somos gente diferente deles.
Na verdade, é o pensamento deles
que se mostra curto e obscuro.
Não consegue se expandir e se elevar,
porque eles querem ignorar a morte. [ … ]
Ficam sempre bebendo cachaça e cerveja,
que lhes esquentam e esfumaçam o peito
por isso que suas palavras ficam tão ruins e emaranhadas.
Não queremos mais ouvi-las.
Para nós, a política é outra coisa.
São as palavras de Omama e dos xapiri que ele nos deixou.
São as palavras que escutamos no tempo dos sonhos
e que preferimos, pois são nossas mesmo.
Os brancos não sonham tão longe quanto nós.
Dormem muito, mas só sonham consigo mesmos.
(do livro A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami, com Bruce Albert; Companhia das Letras, 2015)
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O FUNÂMBULO
Jean Genet
A morte
– a morte da qual eu falo –
não é aquela que virá depois da sua queda,
mas aquela que antecede a sua aparição no arame.
É antes de subir no arame que você morre.
Este que dançará estará morto –
decidido a todas as belezas,
capaz de todas as belezas.
E, quem sabe?
Se você cai do arame?
Os enfermeiros te levarão na maca.
A orquestra tocará.
Farão entrar os tigres ou as amazonas.
***
Dê ao seu arame a mais bela expressão,
não sua, mas dele.
Seus pulos, seus saltos, suas danças
– em gíria de acrobata
seus flic-flaps, reverências, saltos mortais, giros etc.
você os fará perfeitos
não para que você brilhe,
mas para que um fio de aço
que estava morto e sem voz
enfim cante.
Como o arame te será grato
se você for perfeito nas suas ações
não pela sua glória, mas pela dele.
Que o público maravilhado bata palmas:
– Que arame incrível!
Como ele sustenta seu equilibrista e como ele o ama!
Por sua vez, o arame será para você
o mais maravilhoso dançarino.
O chão fará você tropeçar.
(Le Funambule, traduções de Beatriz Azevedo)