Notícias de outras ilhas: Ana Paula Pacheco

Notícias de outras ilhas: Ana Paula Pacheco
(Foto: Marcos Fabris)

 

Ana Paula Pacheco é contista e professora de Teoria literária na USP, autora de Lugar do mito: narrativa e processo social nas Primeiras estórias, de Guimarães Rosa e de A casa deles (ficção), ambos publicados pela Nankin Editorial. Publicou recentemente contos nas revistas: Ruído manifesto, Diadorim, n-1.

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena –, indica poemas de Bertolt Brecht, Wislawa Szymborska e Fabio WeintraubA curadoria é de Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário da escritora abaixo.

 

Quando li nesta quarentena as “Notícias de outras ilhas” inventadas por Tarso de Melo lembrei de Drummond, de seus Passeios na ilha, da “Divagação sobre as ilhas”. Me perguntava como poderiam nos servir hoje, insulados que estamos num sentido muito diferente do que o poeta arquitetava em 1952. Namorei vários percursos, reclamando a necessidade de transformar em continente aquelas terras impossíveis. Ilhas de observação, participação e poesia. “Tarefa pra ontem”, respondeu o poeta. Espero, sem humor negro, que a mensagem psicografada não seja literal.

“Culture is ordinary” (“Cultura é para todos”) diz um lindo texto de Raymond Williams. Não no Brasil nem em lugar nenhum ainda. Mas como diria outro senhor cuja precisão com as palavras — e cuja gentileza com conhecidos e desconhecidos — nos fazem muita falta: “Quando o mundo diz, ‘Mata!’, o Brasil diz, ‘Esfola!’”

Como ler durante a quarentena sem pensar em todos que não têm esse direito? São muitas as condições materiais escondidas na possibilidade da leitura.

Para ser sincera, não tenho realmente nem certeza do que pode a poesia. Entretanto, me agarrar ao que não sei tem sido uma tábua de salvação: quem sabe se a poesia não pode afinal ser um laboratório de novas formas sociais? O que pode sua radicalidade, com tudo que solicita de treino da imaginação?

Escolhi três poemas para esta ilha, atravessada, portanto, por um paradoxo: vivemos, confinados, um tempo da emergência de ação. Também atravessada por forças que movimentam o que o inimigo — o fascismo, é bom dizer — gostaria de perpetuar: que o digam o incrível protesto feito no último domingo pelas torcidas do Corinthians e do Palmeiras, reunidas contra a tirania genocida; as chamas antiburguesas em Nova Iorque; a força das manifestações se espalhando pelo globo em defesa da vida dos negros. Todos sabemos quantas casas voltamos no tabuleiro nos últimos meses. Entretanto, pode haver algum saldo de valor cognoscível nessa experiência vivida, se ela nos servir para transformar o inadmissível: experimentamos, embora de modo muito mais protegido, o perigo real, o sentimento de persecução, o medo pra valer, que sempre foram o dia-a-dia dos pobres.

O primeiro poema desta seleção é o de número “V” do Guia para os habitantes da cidade (1930), de Bertolt Brecht, em tradução de Tércio Redondo. Escolhi-o por muitas razões, a mais importante é a atualidade da voz feminina, espoliada por todos os lados, que nele ressoa de modo complexo, estilizado, teatral, agressivo, vivo. Também me interessou o modo como a matéria do poema movimenta e determina sua forma. Isto é, quando quem fala de si, sonhando coser a cicatriz entre sujeito e outro (mundo), é uma mulher miserável — sob risco de contaminação de sífilis, suicida fracassada, que bebe para conseguir dormir, ex-cocainômana envenenada com arsênico — as determinações sociais passam necessariamente a ser parte da própria tentativa de dizer “eu”. “Sou uma merda”. A épica torna-se pressuposto da lírica não confinada ao universo burguês.

Tanto quanto sabe ser “um lixo”, a falante do poema sabe também se desinventar, num salto individualmente delirante talvez, ao passo que sua transformação, recorrente nas estrofes, convoca a imaginação da história a abrir uma brecha entre “hoje” e “amanhã”. Numa ultrapassagem do próprio corpo, aliás cheio de erotismo, a mulher imagina transformar-se por fim em matéria com a qual será assentada a (nova?) cidade. A superação às avessas põe a nu, no transe da subjetividade “junkie”, o sentido das edificações do capitalismo. “Logo já não serei uma merda, mas/ a dura argamassa com que/ se constrói a cidade”. Recomendo vivamente o ensaio de Iumna Maria Simon sobre o Guia, “Lendo alguns poemas de Brecht com olhos de hoje”, com o qual aprendo os caminhos dessa poética radical.

O segundo poema é de Wislawa Szymborska, “Primeiro retrato de Hitler” (1987), em tradução de Regina Przybycien. A janela aberta pela poesia de Brecht, desempesteando o ar abafado da lírica burguesa, me levou até Szymborska. A capacidade de virar de ponta cabeça a perspectiva convencional sobre a qual pensamos o horror da história funciona no poema escolhido como contraveneno do relativismo revisionista, conduzindo o olhar por vias inimagináveis, a desnaturalizar o mal (ou o Mal). Se as dobrinhas, o sorrisinho, os sonhos de futuro projetados pela família sobre o bebê Hitler não diferem do senso comum das expectativas de uma “família honesta” de finais do século 19, se não é possível identificar ali o monstro, fica difícil pensá-lo como ponto fora da curva da civilização capitalista.

Outro ponto digno de comentário é a pergunta proposta já desde o título: “O que pode ser objeto de poesia?” Szymborska é capaz de pôr a mão em qualquer assunto e virá-lo de ponta cabeça, girando a perspectiva. Vindo da paixão de Baudelaire pelos desgraçados da história, o ponto de vista passou, desde Brecht, a ser um vetor fundamental também da poesia.

Arrematei essa ilha com o primeiro dos “Sete poemas trans”, do livro mais recente de Fabio Weintraub, Quadro de força (2019). Há tempos o poeta pesquisa vozes de moradores e moradoras de rua em São Paulo. O resultado é a busca de um painel urbano visto do chão da calçada (evidentemente sem que se possa retirar do jogo de vozes a própria presença do poeta). As afinidades eletivas com Brecht não são mero acaso. A matéria imediata vibra em dimensões complexas para além dela, desfazendo o “achatamento” da existência sob as condições de rua. Junto com a fome, a sujeira, a precariedade, voltam a caber na cena o desejo, o direito à libido, o direito à própria imagem. Parte do quadro apresentado ao leitor é sem dúvida a presença afetiva de quem escuta e compõe a voz alheia, valendo-se com desenvoltura das técnicas de montagem. Note-se entretanto a atualidade dessa mediação — o afeto pelos desconhecidos, no caso, pelas desconhecidas — numa época em que parte significativa da humanidade perdeu o interesse pelo outro. Encarando um rebaixamento literal da estética no corpo da habitante da cidade, tantas vezes tratada como descarte humano, o poeta escolhe implicar-se na cena, mesmo quando se trata de levar junto com a trans o soco que desloca o silicone das maçãs do rosto.

 

***

Guia para os habitantes da cidade – “V”

Bertolt Brecht

Sou uma merda. De mim
Nada posso exigir senão
Fraqueza, traição e decadência
Mas um dia percebo:
Está melhorando, o vento
Sopra em minhas velas, chegou minha vez, posso
Ser mais que uma merda —
Começo a sê-lo agora mesmo.

Sendo uma merda notei que
Ao me embriagar, deito-me
Simplesmente e não sei
Quem está em cima de mim; agora não bebo mais —
Acabo de parar.

Para me manter viva, tive, infelizmente,
De fazer
Uma porção de coisas que me prejudicaram; tomei
Do veneno que teria
Matado quatro cavalos, mas só assim
Pude me manter viva; por um tempo
Usei cocaína, até parecer
Uma vara seca
Mas então me vi no espelho —
E parei imediatamente com isso.

Tentaram, naturalmente, infectar-me
Com sífilis, mas
Não conseguiram; só puderam me envenenar
Com arsênico: eu tinha a meu lado
Tubos que dia e noite drenavam pus. Quem imaginaria
Que uma tal mulher
Pudesse de novo enlouquecer os homens? —
Recomecei imediatamente a podê-lo.

Não fiquei com nenhum homem que não
Tivesse feito algo por mim; fiquei
Com todos de que precisei. Quase
Não tenho sentimentos, quase não me excito mais
Contudo,
Sempre me recupero; tenho momentos bons e ruins, mas
No final, mais bons do que ruins.

Noto que ainda chamo minha inimiga
De porca velha, e ela, como inimiga, logo percebe
Que um homem está a observá-la.
Mas, dentro de um ano,
Terei parado com isso —
Já comecei a parar.

Sou uma merda, mas
acabarei por tirar partido de tudo; vou
Subir, sou
Inevitável, sou a geração de amanhã
Logo já não serei nenhuma merda, mas
A dura argamassa com que
Se constrói a cidade.

(Isso eu ouvi de uma mulher)

(trad. Tércio Redondo)

***

Primeira foto de Hitler

Wislawa Szymborska

E quem é essa gracinha de tiptop?
É o Adolfinho, filho do casal Hitler!
Será que vai se tornar um doutor em direito?
Ou um tenor da ópera de Viena?
De quem é essa mãozinha, essa orelhinha, esse olhinho, esse narizinho?
De quem é essa barriguinha cheia de leite, ainda não se sabe:
de um tipógrafo, padre, médico, mercador?
Quais caminhos percorrerão estas pernocas, quais?
Irão para o jardinzinho, a escola, o escritório, o casório
com a filha do prefeito?

Anjinho, pimpolho, docinho de coco, raiozinho de sol,
quando chegou ao mundo um ano atrás,
não faltaram sinais na terra nem no céu:
gerânios na janela, um sol primaveril,
a música de um realejo no portão,
votos de bom augúrio envoltos em papel crepom rosa,
pouco antes do parto, o sonho profético da mãe:
sonhar com uma pomba — sinal de boas-novas,
se for pega — vem uma visita muito esperada.
Toc, toc, quem é, é o coraçãozinho do Adolfinho que bate.

Fralda, babador, chupeta, chocalho,
o menino, com a graça de Deus e bate na madeira, é sadio,
parecido com os pais, com um gatinho no cesto,
com os bebês de todos os outros álbuns de família.
Não, não vai chorar agora,
o fotógrafo atrás do pano preto vai fazer um clique.

Ateliê Klinger, Grabenstrasse Braunau,
e Braunau é uma cidade pequena mas respeitável,
firmas sólidas, vizinhos honestos,
cheiro de massa de pão e de sabão cinzento.
Não se ouve o ladrar dos cães nem os passos do destino.
Um professor de história afrouxa o colarinho
e boceja sobre os cadernos.

(trad. Regina Przybycien)

***

Sete poemas trans

Fabio Weintraub

I. desce

comecei com sutiãs
para mastectomizadas

também me sentia assim
mutilada
(uma perninha a menos
num cromossomo X)

os sutiãs eram caros
mas o enchimento
em compensação
não se deslocava
como o silicone industrial
na maçã do rosto
desce para a bochecha
depois de um soco


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