Notícias de outras ilhas: Alberto Martins
(Foto: Danilo Ferrara)
Escritor e artista plástico, Alberto Martins nasceu em Santos em 1958 e trabalha como editor em São Paulo. É autor, entre outras obras, dos livros de poemas Cais (2002), Em trânsito (2010); da peça de teatro Uma noite em cinco atos (2009); e das novelas A história dos ossos (2005), segundo lugar no Prêmio Portugal Telecom de Literatura, Lívia e o cemitério africano (2013), Prêmio APCA de Melhor Romance do Ano, e Violeta (no prelo). Suas últimas publicações são Giotto, A fuga para o Egito (Luna Parque, 2020) e 2020 e outros poemas, na coleção virtual “pandemia crítica”, que pode ser acessada no site da n-1 edições.
Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena –, indica poemas de Leonardo Gandolfi, Maria Esther Maciel e Rimbaud. A curadoria é de Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário do escritor abaixo.
Um dos poemas que mais me tocou recentemente é o “Robinson Crusoé e seus amigos”, do Leonardo Gandolfi. Ele saiu na edição de março da piauí, mas para quem não acompanhou aqui vai ele. É um poema que fala, entre outras coisas, de transmissão e sobrevivência – mais do que apropriado para este momento.
O segundo poema é da Maria Esther Maciel, “Orquestra da natureza”, e está publicado em Longe, aqui, uma reunião de sua “poesia incompleta: 1998-2019”, que saiu em março de 2020, logo antes de entrarmos em quarentena. Gosto da acuidade auditiva que ele propõe, no limite do impossível. E reparem só nos últimos versos: parece que pressentiram o que vinha por aí.
O último poema é uma tradução que fiz com a ajuda de amigos do “Democracia”, de Rimbaud. Foi escrito quase 150 anos atrás e costuma ser colocado na parte final das Iluminações, como se o poeta já estivesse dando adeus a sua vida – e, de certo modo, acho que está mesmo. Nele, Rimbaud ensaia uma voz cínica (o poema inteiro está entre aspas) que deseja participar da empresa colonial, a qual acabou moldando o mundo em que vivemos hoje.
***
Robinson Crusoé e seus amigos
Leonardo Gandolfi
Minha avó
trabalha na casa
de uma das irmãs
de Clarice Lispector
Minha mãe
ainda jovem
frequenta o lugar
e como adora livros
é convidada
por Clarice a cuidar
da sua biblioteca
uma vez por semana
Depois que minha mãe
limpa os livros
com flanela
e coloca tudo em ordem
na estante
Clarice entrega a ela
com o punho cerrado
algumas notas e diz
isto aqui Rita é para os seus supérfluos
#
Ao completar
50 anos
minha mãe
descobriu na cabeça
o aneurisma
que a tiraria de cena
Na época
mexendo em suas coisas
descobri o carimbo
que ela usava no trabalho
para assinar
relatórios e memorandos
Prestes a perdê-la
usei o carimbo
para colocar seu nome
na folha de rosto
dos livros que lia para ela
durante o coma
Depois de anos
me mudando
de casas e cidades
perdi o carimbo
e os livros que marquei
com seu nome
à exceção do velho exemplar
de Robinson Crusoé
que ainda guardo comigo
#
Entre as coisas
que minha mãe deixou
está uma série de folhas secas
que ela recolhia
de jardins e parques
quando viajava
Em cada uma das folhas
estão anotados
com tinta azul de caneta
lugar e dia
em que foram recolhidas
Sem saber muito bem
o que fazer
com essa coleção
fiz o mesmo que minha mãe
e guardei uma a uma
as folhas secas
entre as páginas
dos livros na estante
Sobraram poucas
mas mesmo assim
acabo não lembrando
onde cada uma está
Por isso às vezes
sou pego de surpresa
quando ao abrir um livro
encontro folhas secas
com a letra dela
#
Com o que sobra
do naufrágio
Robinson Crusoé
monta uma coleção
de itens indispensáveis
como pólvora
rum e o cachimbo
que ele acende agora
enquanto espera
seu fiel escudeiro
Sexta-Feira
Da minha parte
anotar todas as vezes
em que a palavra
supérfluo
aparece nos livros
de Clarice
e fazer um inventário
#
Estou há algum tempo
tentando escrever
estas memórias
Até que
madrugada passada
ao ninar Rosa
minha filha
as peças soltas
ameaçaram se juntar
Não lembro quem
mas alguém disse
que à noite
todos os poemas são cinza
Nem todos
tanto que chegou a hora
de dedicar este
a Rosa
Se estou aqui
é só para esperar
a próxima vez
em que você vai chorar
a próxima vez
em que você vai sorrir
Enquanto nem uma coisa
nem outra acontece
presto atenção
nos menores detalhes
a minha mão
junto da sua
#
Ao limpar
e ordenar os livros na estante
minha mãe
acende um ou outro cigarro
já Clarice
nunca apaga os dela
Sabe Rita
não tem nada
que me faça dispensar
os meus cigarros
Sabe Rita
gosto de fumar
até durante as refeições
Sabe Rita
agora estou treinando
fumar e dormir
ao mesmo tempo
– dizia isso rindo –
não é fumar enquanto se espera
o sono chegar
mas sim fumar e dormir
de uma só vez
nem que para isso
eu entre em combustão
***
A Orquestra da Natureza
Maria Esther Maciel
O mundo não é o que pensamos
Carlos Drummond de Andrade
Certos pássaros, insetos e mamíferos só
vocalizam nas primeiras horas do dia se há por
perto uma lagoa de águas tranquilas.
As formigas cantam roçando as pernas contra
o abdômen, enquanto os grilos cricrilam
friccionando as asas em ritmo insone.
Os golfinhos podem emitir sons tão intensos
e firmes quanto as armas de grosso
calibre.
O som do milho crescendo lembra o ruído de
mãos rudes e secas se esfregando na borracha
de um balão de festa muito cheio.
Há peixes que, discretos em sua existência,
anunciam, pelo ranger dos dentes, a sua
imprecisa presença.
Os gorilas se cumprimentam com um ronco
espesso e sem solavancos, como se limpassem
a garganta.
Os gritos dos filhotes de abutre são tão terríveis
e potentes que ficariam bem em um filme de
suspense.
Se as anêmonas produzem sons esquisitos,
algumas larvas têm assinaturas sonoras
imprevistas.
Os gemidos de um castor desconsolado são
mais pungentes que os de qualquer primata em
estado deplorável.
Os sapos se protegem coaxando em coro
e deixam confusos os coiotes, as corujas
e as raposas.
Muitos bichos se comunicam por vias
clandestinas ou quase inaudíveis para
alguns ouvidos.
Bactérias e vírus também integram a ordem
sonora do mundo vivo.
***
Democracia
Arthur Rimbaud
“A bandeira cruza a paisagem imunda, e nosso patoá abafa o tambor.
Nas cidades alimentaremos a mais cínica prostituição. Massacraremos as revoltas lógicas.
Aos países de pimenta e pântano! — a serviço das mais monstruosas explorações militares ou industriais.
Adeus aqui, não importa onde. Conscritos de bom grado, teremos a filosofia feroz; ignorantes da ciência, a postos para o conforto; esse mundo que arrebente. É a verdadeira marcha. Avante — estrada!”