Notícias de outras ilhas: Mônica de Aquino
A poeta Mônica de Aquino (Foto: Arquivo Pessoal)
Mônica de Aquino (1979) nasceu em Belo Horizonte. É autora de Sístole (Editora Bem-te-vi, 2005), Fundo falso (Relicário Edições, 2018) e Continuar a nascer (Relicário Edições, 2019). Fundo falso venceu o Prêmio Cidade de Belo Horizonte em 2013 e foi finalista do Prêmio Jabuti em 2019. Publicou, também, cinco livros infantis, todos pela editora Miguilim. Participou de antologias como Roteiro da poesia brasileira 2000 (ed. Global) e A extração dos dias (Escamandro) e tem poemas publicados em periódicos como Poesia Sempre e revista Piaui. Prepara, atualmente, o livro Linha, labirinto.
Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena – indica poemas de Ocean Vuong, Eliot Weinberger e Daniel Arelli. A seção é curada por Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário da poeta abaixo.
Para responder ao convite que tão gentilmente me foi feito, lembro, agora, do trecho de um poema de Ocean Vuong de onde tirei a epígrafe de Continuar a nascer, meu último livro. “Homens que ultrapassam montanhas/ levando seus sonhos, seus mortos/ nas costas./ Mas só uma mãe pode andar/ com o peso/ de um segundo coração que bate.” Porque é hora de suportar o peso de si, do outro, de tantos corações multiplicados. O mundo, neste momento, pede valores tradicionalmente associados ao feminino: recolher-se, esperar, cuidar dos filhos e da casa, retornar ao que há de mais íntimo; deixar as montanhas por um tempo, os sonhos de rua e multidão, e proteger, acolher. Da vida doméstica, no entanto, volto-me ao céu: do espaço estreito em que estou posso olhar além, me dirigir ao que lembra passado e futuro, mas é também permanência: falo do livro As Estrelas, de Eliot Weinberger. O projeto, desenvolvido para o MoMA, é um longo poema que costura impressões e crenças em torno das estrelas de diferentes povos e épocas. O momento que vivemos pede delicadeza, e é ainda a beleza que nos salva. E também o afeto. Por isso, termino esta seleção com um poema de Pavilhão (Edições Macondo), novo livro do Daniel Arelli. Ele foi escrito nos primeiros dias de quarentena a partir de um show virtual do músico Kiko Dinucci. Penso no Daniel e na Ana Martins Marques, na Prisca Agustoni e no Edimilson, na Jussara Salazar, na Natália Agra, no Guilherme Gontijo Flores e nos tantos amigos dando notícias das suas ilhas, nas vozes que chegam ou ecoam de um outro tempo. É com eles o caminho. E como sou mais reclusa do que sociável, nem sempre deixando tão claro os meus amores, essa última escolha é também um jeito de agradecer aos amigos que a poesia me trouxe (e que reafirmo agora), a todos que permanecem por perto, reconhecendo a poesia como esse lugar de reinvenção de laços e parcerias – um lugar para talvez começar de novo um outro mundo possível.
De cabeça
Ocean Vuong
Không cí gì bang com voi cá.
Không cí gì bang má voi con.
Provérbio vietnamita
Você não sabe? O amor de mãe
ignora o amor-próprio
como o fogo ignora
os gritos sonoros
daquilo que queima. Meu filho,
mesmo amanhã
você vai ter o hoje. Você não sabe?
Alguns homens tocam seios
como tocassem
o topo de crânios. Homens
que ultrapassam montanhas
levando seus sonhos, seus mortos
nas costas.
Mas só uma mãe pode andar
com o peso
de um segundo coração que bate.
Garoto tolo.
Talvez você se perca em todo livro
mas jamais vai se esquecer de si
como deus esquece
as próprias mãos.
Quando alguém te perguntar
de onde você é,
responda sempre que o teu nome
virou carne na boca banguela
de uma mulher da guerra.
Que você não nasceu
que você rastejou, de cabeça —
rumo à fome dos cães. Meu filho, responda
que o corpo é uma lâmina que se afia
cortando.
Tradução de Rogério Galindo
***
As estrelas (trecho)
Eliot Weinberger
elas são, elas simplesmente são;
as estrelas são um jardim gigantesco, e, se é verdade
que não vivemos o bastante para testemunhar
como germinam, despontam, criam folhas, dão frutos,
murcham, secam e morrem, ainda assim são tantos
os seus espécimes que cada estágio está sempre à vista;
nós mesmos e todas as estrelas que vemos somos apenas
um átomo num conjunto infinito: um arquipélago cósmico;
o céu é como uma pedra de moinho girando, e as estrelas são como
formigas caminhando na direção oposta;
o céu é como o pálio de uma carruagem, e as estrelas são
como as contas que o pontilham;
o céu é um orbe sólido, e as estrelas são a luz perpétua
dos vulcões em sua superfície;
o céu é de lápis-lazúli sólido, e as estrelas são seus veios de pirita;
cada estrela tem um nome e mais um nome secreto;
Tradução de Samuel Titan Jr
***
Rastilho
Daniel Arelli
Sob o impacto do show virtual
Ao vivo e sem público
São Paulo, Casa de Francisca, primeiros dias de quarentena
Do centro desta cidade que é como uma artéria
encalacrada
do hemisfério
— e que agora bombeia
desimpedida
o fluxo proliferante
do antiorganismo —
do alto do edifício
cercado
por sua presença irrefreável
(qual rastilho
tóxico invisível)
Kiko Dinucci toca seu instrumento
para uma casa
vazia
de frente para a parede
para o nada
para a máquina
de onde acenamos
submersos
de costas para as cadeiras
vagas
como um antimonumento
para a cidade desertada
Kiko Dinucci toca seu instrumento
entre pele e corda
indiscernível
(qual rastilho
sônico invisível)
como se erguesse
uma linha divisória
um círculo mágico
de ruído
o último totem
ainda possível