Zona de interesse ou do terror
divulgação
“… é barbárie escrever um poema depois de Auschwitz…”
Theodor Adorno
“Zona de Interesse” é um filme de terror. O mais brutal entre todos os filmes de terror. No passado, os filmes de terror eram assim, não víamos o monstro, não éramos tomados pelo banho de sangue. Havia apenas um corredor sombrio, o ranger das tábuas do assoalho, uma porta entreaberta: o monstro se esgueirava na escuridão, a desgraça chegava implacável e sem rosto.
Os quatro primeiros minutos de “Zona de Interesse” são os piores. O fundo escuro de uma tela, os letreiros se esvanecendo, as sombras sólidas e cortantes possuindo o espaço, primeiro da própria tela e depois de toda a sala do cinema até não restar mais ar no ambiente. Quatro minutos de um silêncio aterrador, ainda que entrecortado por uma música indistinguível e outros sons ainda mais indistinguíveis. Como não enxergamos, somos obrigados a fazer algo horrendo, somos obrigados a imaginar…
A tranquila vida de uma família que corre normal ao lado do anormal, um jardim separado por um muro que não esconde as chaminés dos crematórios de Auschwitz e a fumaça dos trens que transportam pessoas (o “material”) para o nada. Vizinhos daquilo – Isso, meu próximo.
Mas, há ainda algo mais terrível.
Quem é o monstro? Rudolf Höss? O funcionário cioso das suas obrigações, marido zeloso, pai amoroso que lê histórias infantis para embalar o sono da filha, amante dos animais e das plantas (que ordena aos seus subordinados que se tenha cuidado ao se colher as flores silvestres)? Rudolf desce as escadarias de um prédio imponente – ele está abatido, ainda que confidenciasse à sua amada esposa que estava feliz – e chega em um patamar com um corredor (como nos antigos filmes de terror?): a penumbra só não veste o seu corpo, mas se estende à sua direita. Ele olha para a escuridão e se lhe aparece o que tudo aquilo irá se transformar em um dia não muito distante. Depois, pela primeira vez na narrativa, ele expressa alguma emoção, está aturdido e encara a câmera. Aí então eu me lembro de Walter Benjamin numa das suas teses “Sobre o conceito de história”: Benjamin se refere a um quadro de Paul Klee que se chama Angelus Novus. O quadro representa um anjo que afronta fixamente algo ou alguém: “Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.”
O que o anjo vê e que lhe causa tamanho espanto (talvez repulsa)? Certamente não é só o passado – seria o monstro? Esse anjo, anjo da história, é um cravou os dentes nos meus calcanhares e que acompanha todos aqueles que tiveram notícias de Auschwitz – como a sogra de Rudolf Höss –, que sabem de Kiev, de Darfur, da Baixada Santista, da Maré, dos Alagados. O Angelus Novus de Klee olha para nós – nós que somos a ruína – e permanece de costas para o que vem. Nós também não vemos o que vem, o que se esconde atrás das asas do anjo. É assustador o encarar, encarar o estrabismo do anjo, seu sorriso de dentes tortos para, no final, nos darmos conta de que estamos nos observado espelhados na sua íris. Não somos nós que olhamos o anjo, é ele que nos olha, nós, o monstro.
Assim também, não somos nós que assistimos Zona de Interesse. Quando o muro baixo não esconde as chaminés trabalhando a todo vapor, quando o som de gritos e tiros são abafados pela tranquilidade da vida comum não somos nós que estamos olhando para a tela. Não, não somos nós que vemos… nós é que somos vistos.
Waldomiro J. Silva Filho é professor Titular de Filosofia da UFBA e Pesquisador do CNPq. É autor, entre outros, de A Calamidade (ensaio, CULT, 2022), Os Dias (romance, Patuá, 2023) e Epistemology of Conversation (filosofia, Springer, 2024).