Zero em comportamento

Zero em comportamento

“A arrogância dos dominantes e a humilhação dos dominados foram combatidas na França com a escola pública”, diz a filósofa Olgária Matos.

 

Num período em que as relações acadêmicas entre Brasil e França eram mais fortes, Olgária Matos, professora titular do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), realizou sua pesquisa de mestrado em Filosofia Política na Universidade de Paris 4, Sorbonne. Nos anos seguintes, desenvolveu tese de doutorado sobre a Escola de Frankfurt, época em que também na França o assunto era pouco estudado. Sua formação em Paris, entre 1973 e 1976, foi marcada pelo impacto do cosmopolitismo e pela beleza inexprimível da cidade e das manifestações públicas de massa, como o 1o de Maio, em franco contraste com o Brasil da ditadura militar. Olgária é autora, dentre outras obras, de O iluminismo visionário – Walter Benjamin, leitor de Descartes e Kant (Brasiliense); Filosofia: a polifonia da razão (Scipione) e Vestígios: ensaios de filosofia e crítica social (Palas Athena). Em pleno ano do Brasil na França, a professora falou à CULT sobre a presença e a crise da cultura francesa no sistema educacional e na vida cultural brasileira.

CULT – Você poderia começar lembrando a antiga relação entre a cultura francesa e o Brasil? Contar um pouco das missões francesas e da importância da cultura francesa?
Olgária Matos –
O Brasil tem uma relação com a França desde o período das guerras de religião na França, no século 16, quando os franceses vêm para o Nordeste, sobretudo Maranhão, para fundar a França Antártica, numa tentativa de fuga da violência do continente. Não era uma ocupação como a portuguesa, no sentido colonial, mas uma tentativa de salvação, tanto das crenças religiosas quanto da própria vida. Esse primeiro contato deixou marcas na arquitetura e provavelmente em algum sincretismo religioso. Depois, durante a Inconfidência Mineira, vai haver muita referência aos textos dos enciclopedistas, dos filósofos das luzes franceses, sobretudo Rousseau. Durante algumas insurreições no Nordeste, você também tem citação, leituras públicas que eram feitas em francês dos textos dos filósofos iluministas. Então, você tem algumas ligações culturais e de cultura política já nesses séculos. Agora, a partir dos séculos 19 e 20, houve uma espécie de reação ao mundo cultural francês, apesar de o Brasil já não ser colônia e não ser ocupado pelos franceses, como foi o projeto imperial deles. Os valores franceses, tanto os ligados à formação e à cultura quanto os à política, vieram da França, mesmo o positivismo no Brasil. Mesmo o bom gosto, a moda, era uma coisa que era copiada nos anos 1910 e 1915. Os modistas aqui em São Paulo copiavam a moda francesa e depois costuravam aqui. Quer dizer, sempre tivemos um apelo por essa coisa do bom gosto, da etiqueta, do luxo, que ocupava um imaginário considerável em toda a sociedade e ainda ocupa.

CULT – O projeto de universalização dos valores franceses se desdobrou no sistema educacional brasileiro com a fundação da Universidade de São Paulo?
O.M. –
O projeto propriamente francês, ligado à cultura e à universalização dos valores republicanos, aqui em São Paulo, em particular, vem com a fundação do Liceu Pasteur, nos anos de 1920, em uma mesma missão, com exceção de Claude Lévi-Strauss, que vai fundar depois a Universidade de São Paulo. Os valores do Liceu Pasteur, apesar de ser uma escola particular, eram os valores da escola pública francesa. O que se aprendia na escola pública se aprendia no Liceu Pasteur, quer dizer, as línguas, o grego, o latim, o francês, o inglês. Na escola pública você tinha o espanhol também, coisa que o Liceu não tinha. Durante os anos de formação, havia um equilíbrio muito grande entre disciplinas ditas exatas e disciplinas humanistas formadoras, as literaturas, a história, a geografia, as línguas etc. Isso tudo veio de uma influência francesa, mesmo nas escolas confessionais boas, os jesuítas, por exemplo, nós sabemos, são educadores desde sempre. Você tinha a presença dos jesuítas via Portugal, que também era influenciado pela cultura jesuítica francesa, então havia valores comuns. Claro, uma formação religiosa, mas adaptada ao mundo no sentido de coesão social e de igualdade. Não era só a idéia da opressão e da escravização do índio. Não foi como a colonização inglesa na África do Sul, ou como a civilização contemporânea norte-americana, que chega com bomba, só. Esses projetos imperiais, no caso da França, chegavam junto com um projeto cultural. Você tinha nas comitivas os pintores, os cientistas, aqui no caso brasileiro tivemos mais a influência pela escolaridade formal. As escolas do começo do século, mesmo a Escola de Artes e Ofícios, foram montadas inteiramente no modelo francês.

CULT – Isso se deve à Missão Artística Francesa que chegou por aqui depois da vinda de D. João VI?
O.M. –
Exatamente. Foi como se formaram os mulatos cultos no Brasil, os negros cultos, foi pela Escola de Artes e Ofícios. Essa visão francesa de tornar uma sociedade mais igualitária pela oportunidade dada no plano da cultura tinha o sentido do nivelamento pelo alto da educação. Não é como hoje, em que é melhor dar pouco para muitos do que muito para poucos. Não, a idéia era dar muito para todos. Isso foi a escola pública francesa, que demorou cem anos, depois da Revolução Francesa, para consolidar os valores de igualdade, liberdade, fraternidade, que foram realizados a partir da qualidade das instituições, não pelos vícios e pelas virtudes dos governantes. A idéia, que nós conhecemos tão bem aqui, da arrogância dos dominantes e da humilhação dos dominados foi combatida na França a partir da instituição da escola pública. E isso durante muito tempo no Brasil vigeu; apesar de a escola pública brasileira não ter tido uma presença, ela estava começando a se ampliar para que todos pudessem ter acesso a ela, quando veio o golpe da ditadura.

CULT – Qual a diferença entre o modo francês e o modo norte-americano de pensar a República e a educação?
O.M. –
Existem muitas diferenças, historicamente, por várias razões. A República francesa teve um período de terror e a americana não. Ambas tiveram a Declaração Universal dos Direitos do Homem, mas o espírito privatista da República americana é muito forte, há um individualismo possessivo. Na França não, há uma idéia de República mais ligada à democracia. O que isso pode significar? Na República norte-americana, o que mais imperava era a idéia do ascetismo e da virtude, enquanto a República francesa foi mais ligada à idéia do prazer e da liberdade. A noção de direito e de responsabilidade vigorava muito mais na França, enquanto o respeito à lei americano foi muito forte, não por ela ser boa, mas por ser lei. São formações diferentes. Depois, há uma tradição norte-americana toda ligada à iniciativa privada, em que cada cidadão se sente promovido se tiver enriquecido e tiver seu nome ligado à instituição em que se formou. Então, não há doações pontuais, mas uma prática de doações que se mantêm ao longo do tempo, sem interrupção, apesar de haver enormes desigualdades sociais nos Estados Unidos e as escolas públicas de qualidade estarem apenas nos distritos que têm muita arrecadação.
Quem mora num bairro que arrecada pouco vai para escolas de péssima qualidade. Enquanto a escola pública francesa, em qualquer bairro, é boa, embora isso esteja mudando infelizmente. Em todas as escolas havia um mesmo currículo, portanto, ensinavam as mesmas coisas que se supunham universais e necessárias para a formação do caráter e para o desenvolvimento integral das possibilidades e habilidades de cada um. Isso, obviamente, não vale para as escolas técnicas. Não há essa coisa de fingir que dá aula e fingir que aprende. Já o currículo dos americanos é flexível, as crianças vão pelo gosto delas. Lá você pode ser um aluno medíocre, mas se você desempenhar bem um esporte poderá ser um candidato a Harvard, enquanto os franceses são mais intelectualizados.  

CULT – Isso se reflete na noção de liberdade? A liberdade dos norte-americanos é a mesma dos franceses?
O.M. –
A construção da idéia de liberdade em um e outro país é bem diversa. Os americanos se ligam mais à idéia de liberdade como liberdade de consumo. Os franceses prezam mais a liberdade política. Tanto que as manifestações americanas são permitidas, mas você tem de ficar andando em círculo, você não pode infringir esse molde, senão a repressão chega mesmo. Enquanto na França você ocupa as avenidas, faz Maio de 68. Tem polícia, claro, e ela não é boazinha em lugar nenhum do mundo.

CULT – Como você distinguiria o intelectual francês do americano?
O.M. –
Não podemos nem dizer que existia uma cultura intelectual norte-americana, eles iam todos para a França, todos os grandes escritores passaram por Paris, do mundo inteiro, inclusive da América Latina. Mas nos Estados Unidos você teve uma influência mais inglesa, do empirismo lógico, da filosofia da lógica, dos signos ligados ao utilitarismo anglo-saxão, então, as humanidades nunca tiveram muita expressão. Enquanto a França sempre teve um tipo de intelectual que era um cidadão que participava da vida pública. Nos Estados Unidos, em 1968, os intelectuais não foram a nenhuma manifestação pública contra a Guerra do Vietnã, todos continuaram dando aula. A idéia do intelectual participante inexistia nos Estados Unidos. Já o intelectual francês é filho da cidade, ele nasce quase que reatualizando os valores gregos da filosofia, onde você tem ao mesmo tempo a participação no espaço público e a solidão da reflexão. Não há nenhum grande intelectual francês que não estivesse presente no espaço público. Nenhum.

CULT – Podemos dizer que desde o final da Segunda Guerra a França perdeu bastante o espaço cultural que tinha no mundo, no nosso caso, devido à política norte-americana de aproximação cultural com o Brasil?
O.M. –
Com certeza, a americanização e o grande poder do dinheiro, a universalização do fenômeno do desejo do consumo, a equação “felicidade equivale a consumo de bens materiais” certamente enfraqueceram a cultura francesa, que era a cultura mais voltada à idéia de formação ao ser e não ao ter, que é a cultura norte-americana. Tanto que eles entendem que exportar a democracia é exportar com bomba. Eles entendem que democracia é isso; para os franceses, democracia é uma coisa um pouco diferente, não que eles também não tenham tido um projeto colonial. A França perdeu muito espaço para essa agressividade e esses valores, eu não digo cultura, porque não é propriamente uma cultura o que os americanos trouxeram aqui. O que os americanos trouxeram? A cultura do chiclete, do tênis e do boné. Que cultura em termos universais de despertar o imaginário coletivo? Mesmo se os pobres aqui não tiveram acesso à cultura francesa, eles queriam usar a moda francesa, certa idéia de elegância, de boas maneiras.

CULT – Nem o rock?
O.M. –
Essa cultura sim, sobretudo para a juventude, mas ela chega junto com o chiclete, o tênis, o boné e a língua mal falada, com certa plebeização, que era diferente do nivelamento pelo alto da cultura francesa. Ela entra só pelo rock e pela cultura jovem. O jovem, que pela sua própria natureza é biologicamente criativo, inventivo e sujeito à perda das tradições do passado, fica muito mais vulnerável a uma “a-historicidade” e a assimilar certo tipo de valor sem antes ter pensado sobre ele. É avassaladora a invasão de modos de vida norte-americanos aqui, e até certa contaminação da linguagem. Claro que a língua é sempre universal. Não acho que Babel foi uma punição de Deus, o Haroldo de Campos dizia, foi o milagre da multiplicação das línguas, que tiveram de ser traduzidas umas nas outras. As línguas realizam esse milagre do encontro com o outro na forma da hospitalidade de uma língua na outra. Agora, você tem a hegemonia de uma língua só, e não é pela literatura que ela está entrando. É uma língua mal falada, da gíria absoluta, que não é a gíria no sentido da contestação, é o da padronização; e tampouco a cultura da transgressão, como era o palavrão. Eles só falam palavrão porque é uma cultura voltada para uma coisa plebéia mesmo. É isso o que está predominando hoje, não só no mundo iletrado brasileiro, mas nas instituições educacionais, sejam elas consideradas de grande qualidade, sejam as escolas públicas.

CULT – Como estamos no ano do Brasil na França, mais uma tentativa de aproximação cultural entre esses dois países, você acha que é possível restabelecer esses valores humanistas da tradição francesa?
O.M. –
No momento, é difícil, porque há uma predominância muito grande do poder econômico, e com o poder econômico chegam os valores da cultura dominante, que é a norte-americana. A França também perdeu muito de sua importância política e econômica. O projeto da comunidade européia é em larga medida constituir um bloco para poder se opor a esse arrastão norte-americano. Porque são sensibilidades diferentes, tradições diferentes, e os europeus não gostariam de se ver achatados pela visão de mundo norte-americana. Os franceses, particularmente, também estão sofrendo o impacto neoliberal de uns anos para cá, o que significa que  também pararam de investir no mundo ocidental e no mundo oriental, porque tinham muito mais contato com o mundo árabe do que conosco. A cultura francesa era muito presente no Oriente Médio, mas eles estão com menos serviços culturais, menos verbas para ter Alianças Francesas, Liceus, professores. Eles tentam manter a presença francesa, seus adidos culturais, mas hoje ela é bem menor e praticamente tendendo a se restringir em função desse alargamento norte-americano.

Cauê Alves
Mestre e doutorando em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP)

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