Vozes do realismo
Heitor Ferraz
Desde sua estreia com À Margem da Linha, de 2001, Paulo Rodrigues vem sendo considerado uma das boas revelações da literatura brasileira. Sem a pressa que costuma embotar as melhores intenções literárias, Rodrigues chega agora ao seu segundo romance, tendo lançado nesse meio-tempo apenas um livro de contos.
Com As Visões do Sótão, seu novo romance, o escritor – que já foi elogiado por ninguém menos que o semirrecluso autor de Lavoura Arcaica, Raduan Nassar, mantém-se atrelado ao tenso universo familiar, que já havia marcado seu primeiro livro, mas dá uma volta dentro de seu trabalho, criando um personagem difícil de abarcar.
Damiano, referência provável aos santos gêmeos Cosme e Damião, padroeiros dos médicos e farmacêuticos e, pela via popular, protetor das crianças, é uma espécie de “pobre coitado”, cuja vida é lançada, desde cedo, a um segundo plano. Caçula da casa, sofre humilhações vindas tanto do irmão mais velho como da mãe – suas sombras ao longo da narrativa. Tudo vai carreando no livro para um universo dolorido, que se fecha dentro da cabeça do personagem, gerando características que tocam a esquizofrenia.
Para compor sua narrativa intrincada, dividida em duas partes que se espelham, Paulo Rodrigues lança mão dos cadernos de notas de Damiano. Ele as teria escrito para relatar sua vida. No entanto, essas notas são pontuadas por um comentário exterior, grafado ao longo do livro em itálico, e que seria o de um narrador onisciente, que conhece essa história de ponta a ponta e pode, por isso mesmo, fazer sutis ajustes desabonadores ao que é dito pelo personagem.
O artifício não é dos mais simples e pode gerar algumas dúvidas quanto à composição do romance como um todo. O leitor pode se perguntar por que esse narrador se insere e reconta o que foi dito logo antes ou logo depois, com pequenas alterações no relato dos fatos, que até então parecia ser objetivo.
Estrutura
O romance é dividido em duas partes e composto principalmente pelas anotações de Damiano. Sabemos por uma espécie de prólogo que o Damiano que escreve já não é mais moço e traz um baú de memórias afetivas para lá de esgarçado e doente. “Neste caso, em que a narrativa se apoia nas lembranças de uma mente envelhecida, para depois ser comparada ao conteúdo de uma caixa onde está misturado o pó de várias ossadas, convenhamos, que veracidade se ganha com esse tipo de rigor formal?”, diz, logo de saída e de forma desabusada. O próprio narrador-personagem avisa ao leitor que ele está num campo movediço, onde a verdade se move sem se fixar.
Na primeira parte do livro, ele narra sua infância e o momento em que começou a ouvir uma voz, “que me desviou para o caminho do ódio, trilha por mim desconhecida e que só palmilhei após um violento conflito interior”. É nessa passagem que a vida de Damiano se divide entre a que ele vive e aquela que a voz o faz viver, criando um duplo dele mesmo, cuja função parece ser a de defendê-lo do mundo exterior – e cria-se uma fantasia heroica para um total anti-herói. Sua vida sem perspectivas o leva a ser alfaiate e a se casar com Nena, jovem fogosa que aparentemente o trai. A traição é o nó do romance. Ele se sente incapaz de se vingar, seja do irmão, que o arreliou na infância; seja da mãe, objeto de intenso amor, mas que sempre o humilhou preferindo o primogênito; seja da Nena. No entanto, sem afirmar nada, vamos notando que a vingança deve ter sido trágica, um trágico que ele não conta, que ele oculta sob o manto protetor de uma linguagem objetiva.
Na segunda parte, vamos encontrar Damiano em Montevidéu, no Uruguai. Uma fuga para a cidade onde sua mãe sempre lhe dizia ter sido imensamente feliz. Lá, ele passa a se chamar Guido, e é assim que ele mesmo se trata, em suas anotações. E, curiosamente, mesmo sendo já um homem mais velho, ocultado por esse duplo, sua vida como que se repete, com um novo casamento também estranho, agora com uma dançarina de cabaré com o alegórico nome de Maruja. Ele consegue por um momento viver sem a voz, ou seja, sem ameaças, até que se casa. E a voz terá de reaparecer para soprar a poeira do sótão de sua memória.
Os fatos relatados são rearranjados pelo narrador onisciente, marcado em itálico, aqui e ali. É como se ele ajustasse os acontecimentos à verdade, que sempre escapa. No entanto, ficamos sem saber quem é esse segundo narrador, se ele não seria a própria voz, já autônoma de tudo, se inserindo e recontando a história.
Esse nó intrincado criado pelo romancista gera uma narrativa tensa, pela qual o leitor se move inicialmente como se diante de um romance realista tradicional, com o fio da história se desenredando, mas, ao mesmo tempo, a duplicação das vozes cria um ruído em relação à notação realista, levando-nos a perguntar: de onde veio esse caderno? De onde vêm esses ajustes em itálico?
Os fatos passam a interessar menos, e ganham vulto esses raios de um surto esquizofrênico a corroer toda e qualquer segurança. É como se Paulo Rodrigues, de maneira notável, nos colocasse dentro da cabeça de Damiano, um personagem que junta as facetas do homem bonzinho e vítima do mundo com as do homem violento, com sede de vingança. Um “sótão” com poeiras infinitas a desestabilizar, de forma angustiante, o lado confortável dos romances realistas de hoje.
As Vozes do Sótão
Paulo Rodrigues
Cosac Naify
144 págs.
R$ 40