Você sabe quem são os femminielli?

Você sabe quem são os femminielli?
Tarantina (à esq.) e outros amigos femminielli napolitanos (Foto: Reprodução ©️ Ombre Corte)

 

Quem caminha pelas ruas singularmente estreitas dos Quartieri Spagnoli, antiquíssimo bairro no centro de Nápoles, cedo ou tarde vai deparar com murais de alguns dos grandes ídolos da população local. Entre napolitanos de nascimento – como os atores Totò e Bud Spencer – e os de coração – como Diego Armando Maradona –, os que caem nas graças de quem mora à sombra do Vesúvio costumam ganhar adoração irrestrita, além de respeito e homenagens, como esses painéis ao ar livre.  

Em 2018, uma figura muito querida no bairro ganhou um mural próprio na via Concezione a Montecalvario, uma das ruelas dos Quartieri. Conhecida por La Tarantina, é uma senhora gordinha, de lábios inflados e joviais franjas loiras, que tem hoje 87 anos e se autoproclama o mais antigo (e talvez último) dos femminielli, personagens históricos dos becos partenopeus que unem características masculinas e femininas, mas embutindo em sua androginia uma aura de natureza tida como sagrada pelos moradores da cidade.   

Grosso modo, um femminiello é um napolitano de bairro popular que nasceu biologicamente homem, mas que assume um estilo de vida e hábitos comportamentais bem mais próximos do que tradicionalmente se convencionou como “feminino”. É meio tentador querer rotular essas pessoas como mulheres trans comuns, mas seria uma equivocada simplificação para um conceito bem mais complexo, que não à toa ganhou um termo específico dos próprios habitantes de Nápoles. Possuem historicamente particularidades sociológicas que desautorizam entender o vocábulo como uma simples palavra napolitana para se referir à transexualidade ou ao travestismo ordinário.  

Não se sabe quando os primeiros surgiram, mas registros do século 16, pelo menos, já mencionam a existência dos então chamados effeminati pelas ruas de bairros mais pobres. Sua ambiguidade sociossexual causava estranhamento na população, incapaz de vê-los como pessoas comuns. Sempre muito místicos e com uma propensão a sacralizar o que lhes parece inexplicável, os napolitanos começaram a ver alguma coisa de excelsa naquelas criaturas, que andavam pelos Quartieri emperiquitadas como mulheres vaidosas, mas sem deixar de mostrar claramente que eram homens. Essa duplicidade, que muitos diziam descender de Partênope – dúbia figura mitológica fundadora da cidade, que era metade mulher e metade ave –, os fascinava.  

Os femminielli passaram a ser associados a eventos positivos e logo se tornaram espécies de talismãs-humanos, portadores de sorte. Por isso, não raro eram recrutados para participar de certos rituais partenopeus – por exemplo, eram eles que retiravam das urnas os números sorteados durante a tômbola, um tipo de bingo muito apreciado no sul da Itália. Em casamentos, estavam sempre presentes para trazer bom agouro aos noivos, e nos partos, eram esses rapazes com ares maternais os primeiros a segurarem os bebês e lhes darem as boas-vindas ao mundo.  

Fora dos becos populares, a coisa era diferente, mas ali dentro, eram livres, respeitados e, por vezes, reverenciados – ainda que, em termos de trabalho, não lhes restasse muito além de papéis específicos de mulheres à época (afazeres do lar, sobretudo) e a prostituição. (E, sim: havia, no fundo, um caráter utilitário nesse respeito social aos femminielli, que de certa forma compreendiam isso e tiravam proveito da situação, conseguindo estabelecer uma vida bem mais tranquila naquele meio do que os effeminati que habitavam fora dele.) 

O termo femminiello, antes afetuoso que depreciativo, poderia ser traduzido como algo próximo a mulherzinha, e existe no italiano tanto no masculino como no feminino (femminiella) – em geral, eles mesmos alternam a maneira como se referem a si próprios, sem uma regra muito clara. Este texto os trata no masculino como uma maneira proposital de diferenciação das mulheres trans em geral; em termos de gênero, um femminiello não se entende enquanto homem nem enquanto mulher. Ou melhor, se entende como ambos: veste-se de forma feminina, mas nunca renuncia por completo a traços de sua masculinidade. Passabilidade social nunca lhes foi uma questão. 

A própria Tarantina explica melhor, em sua autobiografia La Tarantina e sua dolce vita, lançada em 2013: “Para mim, fazer essa passagem completa de homem a mulher [cirurgia de redesignação sexual] é inútil. Melhor continuar sendo algo diferente, nem uma coisa nem outra, e um pouco das duas”. Como se vê, compunham um tipo de gênero não catalogado, muito antes do surgimento dos estudos queer e da cada vez mais extensa sigla do grupo LGBTQIAPN+. 

Ser femminiello era um ato transgressor por natureza, sobretudo em uma sociedade sexista e religiosa como a italiana meridional. Mas eles não o faziam com uma consciência politizada sobre suas atitudes, diferentemente da comunidade transgênero de hoje, que encampa uma batalha diária para ser respeitada, com uma militância bastante refletida sobre sua posição na sociedade. No entanto, como bons representantes do espírito napolitano, os femminielli faziam política à sua maneira, de modo espontâneo, não calculado. A ironia e a irreverência eram parte fundamental da sua luta inconsciente. 

Os rituais próprios dos femminielli são prova disso. Quando dois resolviam se casar, montavam uma espécie de espetáculo, ao qual a população assistia com deleite. O “noivo” se vestia em trajes masculinos (só naquela ocasião, é óbvio), de forma comicamente estereotipada, e a “noiva” surgia feminina como nunca. Na porta da igreja – já que dentro dela não poderiam consumar tal ritual pagão –, fingiam ter acabado de dizer o “sim” no altar e trocavam um beijo no alto da escadaria. Depois desciam os degraus sob acenos dos populares, partindo todos em seguida para uma festa regada a muita música e comilança.  

Nove meses depois do matrimônio, um novo rito: a figliata, o parto de um bebê homem (usavam bonecos ou mesmo pegavam emprestado algum recém-nascido da região), que os pais-mães apresentavam aos vizinhos com enorme orgulho do futuro varão. O ritual é descrito em A pele, o formidável livro de Curzio Malaparte, e surge de maneira ainda mais expressiva em um trecho de sua adaptação de 1981 para o cinema, por Liliana Cavani: ali, o bebê é uma escultura que nasce com um enorme pênis ereto, exibido pelos genitores com alegria histriônica, como se aquele novo macho vindo ao mundo fosse um troféu ou uma graça divina. (A cena existe no YouTube.) Os femminielli estavam ali satirizando dois clichês de uma sociedade machista e excessivamente ritualizada, com a participação dos próprios satirizados. 

“Os elementos grotescos e paradoxais da sua representação de si, da sua própria condição, aqueles que suscitam o riso e a obscenidade, o ambíguo e o não dito, são necessários ao seu papel ritual, a sua função social”, observa o pesquisador Nico Staiti, em um dos textos de Femminielli: corpo, genere, cultura – aliás, obra fundamental sobre o tema, contendo riquíssimos ensaios de diferentes acadêmicos italianos que abordam diversas nuances sobre o assunto.  

Tarantina participou de vários rituais festivos como a figliata ao longo de sua vida, sobretudo na década de 1960, que ela diz ter sido o ápice – e o prenúncio do fim – da era dourada da experiência femminielli. Mas, até ali, sua trajetória de vida tinha sido bem complicada. 

Ela nasceu Carmelo Cosma, em 1936, em Avetrana, vilarejo perto de Taranto. Tinha apenas 11 anos quando abandonou sua terra natal para tentar a vida longe de uma gente de implacável apego a um modo de pensar medieval – até mesmo seus pais lhe deram as costas quando rumores sobre sua homossexualidade caíram na boca dos habitantes.  

Foi parar em Nápoles, vendo-se sozinho em uma metrópole que tanto lhe assustava quanto fascinava. Isso no contexto de um pós-Segunda Guerra especialmente duro para a Itália meridional, que enfrentou fome, morte, destruição massiva de prédios e o inoportuno surgimento de uma epidemia de tifo entre a população mais desassistida. 

Em sua primeira noite na nova cidade, dormiu em uma viela dos Quartieri, e na manhã seguinte uma prostituta o acolheu: “Venha comigo, femminiello, não se preocupe”. Em uma Nápoles em que a prostituição (sobretudo voltada aos soldados estadunidenses) era para as mulheres uma das poucas formas de garantir o spaghetti de cada dia, Carmelo logo percebeu que poderia também agradar estrangeiros e, já assumindo uma identidade de gênero não definida, começou a ganhar dinheiro oferecendo-se sexualmente; em breve, adotaria a alcunha que mantém ainda hoje. 

Já adulta, mudou-se para Roma, bem no auge da Dolce Vita – em sua biografia, diz que conheceu Federico Fellini, que ao botar os olhos em sua figura pela primeira vez, não segurou a língua: “É homem ou mulher?”. Anos depois voltou a Nápoles, e então teve o ápice da vida enquanto femminiello junto de outros parceiros de grupo.  

A partir de fins da década de 1970, com a infiltração do tráfico de drogas nos Quartieri e o domínio massivo da Camorra no local, aquele universo tão peculiar, perdido no tempo e relutante em abandonar suas tradições, foi se corrompendo lentamente e perdendo suas características seculares. Muitos femminielli deixaram a região – a própria Tarantina teve que se virar em outros locais.  

A globalização dos anos 1990 e, nas décadas seguintes, a popularização da internet, com seu potencial de uniformizar comportamentos mundo afora, apenas acentuaram esse processo de perda de autenticidade da Nápoles histórica. A Itália meridional como “forma de vida”, que Pier Paolo Pasolini defendia nos anos 1970 como um importante modo de resistência à imposição capitalista de uma cultura única (a do dominador, é claro), tinha Nápoles como seu principal reduto, segundo o cineasta. Mas, no cenário atual, esse ideal pasoliniano parece cada vez mais uma utopia.  

Hoje em dia, quase inexistem femminielli à moda antiga, e os que restam, em geral, desempenham esse papel em espetáculos ou encenações de um estilo de vida que se tornou inviável no mundo prático. A maior parte se tornou trans. 

(Um dos últimos de que se tem notícia, Ketty Gabriele, foi preso em 2009 – havia se tornado uma importante líder camorrista em Scampia, violento subúrbio de Nápoles, onde comandava o rentável tráfico de drogas na região.) 

A prova máxima de que os tempos de fato mudaram nos Quartieri aconteceu em 2019, um ano após a inauguração do mural de Tarantina. A imagem sofreu vandalismo por alguma voz descontente em ter alguém da comunidade queer ali retratado. “Não é Nápoles”, picharam no muro, cobrindo o rosto da homenageada com tinta negra. 

O mural, pintado pelo artista Vittorio Valianti, foi prontamente restaurado. O então prefeito de Nápoles, Luigi de Magistris, repudiou o ato, que chamou de “antinapolitanidade”. E Tarantina também não se deixou abater. “Aqui encontrei minha família, afetos, amor: esta cidade te abraça e te acolhe, como em nenhum outro lugar”, disse à época ao jornal La Repubblica. “Sou muito mais napolitana do que muitos outros. Na verdade, eu sou Nápoles.”

 

Bruno Ghetti é jornalista cultural e crítico de cinema, bacharel em jornalismo pela UFRJ (2002) e mestre em Études Cinématographiques pela Université Paris Diderot / Paris VII (2011).


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