Violência seletiva

Violência seletiva
Manifestação contra a aprovação da PEC dos Gastos Públicos, em Brasília, dezembro de 2016. (Foto: Lula Marques / Agência Brasil)

Por Vitória Cristina

Quando um dos meus melhores amigos contou casos de violência policial que já sofreu na pele, fiquei chocada.

O Cauê tem 19 anos hoje, mas me contou que quando tinha 16 foi parado por dois policiais no caminho da escola para o treino de basquete em um dos bairros mais ricos de Campinas. Ele estava de uniforme, mas um desses policiais deixou bem claro que tinha uma arma durante toda a abordagem, ao pedir para ele mostrar o documento e ao pedir para que ele abrisse a bolsa.

Não consigo imaginar o que o meu amigo passou durante aquela abordagem, na qual o policial gritou e o tratou agressivamente 100% do tempo, mesmo depois de concluir que ele era inocente. O Cauê é negro, e a quantidade de melanina na sua pele bastou para que houvesse um abuso de poder, que resultou em uma violência policial justificada pelo simples racismo.

Um tempo depois, estávamos eu e duas amigas indo a pé junto a ele para comer um brownie em uma loja do mesmo bairro quando passou uma barata no pé de uma das meninas, o que resultou em um grito e nós três dando uma corridinha, sem saber direito o que tinha acontecido. O Cauê, sério,  só falou “gente, não corre não porque se passa polícia acha que eu to assaltando vocês”. Na hora a gente riu, mas foi só quando eu cheguei em casa que eu entendi o tamanho da verdade naquela suposta piada. Se fosse qualquer menino branco que estivesse andando a pé com a gente, não haveria sequer o medo de sermos abordados por policiais. Mas o Cauê corre um risco muito maior de ser visto como culpado, e para evitar uma abordagem agressiva e invasiva, da qual ele tinha muito medo, ele escolhe não correr nenhum risco. Pelo que eu sei, meu amigo nunca apanhou de policiais, mas as abordagens violentas e as agressões verbais por essa parte da sociedade contra ele criaram marcas muito profundas em quem ele é hoje. O Cauê é mais um jovem que tem medo de polícia, e o irônico é que os supostos responsáveis por manter a segurança do país são grandes contribuidores para a insegurança do povo.

 O que me intriga é que o caso do Cauê simplesmente não é um a parte. Se mudarmos de cenário, sairmos de um bairro rico e irmos para uma favela, incontáveis serão as cenas de mães pedindo para os filhos não usarem o capuz do casaco para não parecerem suspeitos. O abuso de poder lá faz com que alvos atingidos por engano sejam justificados e ignorados. A própria mídia se curva e não torna o assassinato de inocentes notícia. Neste ano de 2019, morreram 19 menores de dezesseis anos na Rocinha por serem “confundidos” com alvos, mas poucos são os casos que viralizam e estes mesmos não resultam em nenhuma medida drástica na nossa sociedade. A polícia é racista e a polícia é elitista. Isso fica claro quando nos damos conta de que em bairros ricos, ninguém morre de bala perdida. Já nos paupérrimos isso é um risco alto corrido todos os dias.

O que tem levado a isso? A heroificação da polícia, expressa como defensora honrosa da pátria, faz com que surja um sentimento de poder e de impunidade. O pensamento é simples: eles fazem com que a Lei seja cumprida, e isso faz com que pensem estar acima da lei. Muitas vezes realmente estão, uma vez que as autoridades das autoridades fazem vista grossa para os delitos cometidos por policiais. “Matou uma criança na favela sem querer. Mas era na favela, né? E ele achou que era o traficante… Não era a intenção.” Essa é a reação da classe média alta, que só se importa com a violência policial quando esta vira notícia e move grandes mídias. Toda semana alguém é assassinado pela polícia nesses bairros, mas ninguém nunca se comove, e quando se comove, faz o que, além de compartilhar a suposta indignação no Facebook? Nada.

 Essa falta de atenção popular perante a agressão policial seletiva faz com que se perpetue a violência imperdoável. Todos acharam um absurdo o tiroteio que tirou a vida de nove pessoas em Paraisópolis, todos acham que a polícia ser racista é algo abominável, todos se comovem quando uma criança morta por bala perdida vira notícia. Mas quem se mexe para mudar isso? Sem mudança, cenas de responsáveis pela segurança do povo tirando vidas inocentes por engano, ou até mesmo por maldade, continuam normais em nosso cotidiano. De vez em quando um caso vira notícia, mas mal passa uma semana e ninguém toca mais no assunto. O problema nasce, procria e não morre, pelo contrário, a cada dia ganha mais vida às custas dos inocentes que são vítimas irreversíveis da violência policial.

 Segurança pública é importante. Precisamos dela, isso é inegável, uma vez que a função primordial do estado é garantir o direito à vida do cidadão. O problema é quando os responsáveis pela segurança pública tornam-se os principais vilões contra ela. A ideia de colocar a polícia em um altar no qual os membros dela são vistos como defensores imaculados do crime não pode mais existir, caso contrário, ainda existirá o conceito de que policiais não cometem delito e não podem ser punidos por algo que supostamente não cometem. Portanto, sem que o povo condene veemente ações segregacionistas por parte da polícia, a violência tenderá a perpetuar sem perspectiva de melhora. É necessário erguer a voz, não permitir que se esqueça dos assassinatos de inocentes, lembrar que nenhum policial é perfeito, nem herói, e que ninguém, independente da posição, está acima da lei. Não há justificativa para homicídio, não há justificativa para abuso de poder, não há justificativa para a violência policial. É crime e ponto final.

Vitória Cristina tem 18 anos e é uma estudante de Campinas (SP)

 

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