“Vidas que Importam” por Mariana Weigert

“Vidas que Importam” por Mariana Weigert

A convidada de hoje do blog é Mariana de Assis Brasil e Weigert

 

 

Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa;

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem

 

MANUEL BANDEIRA

 

 

 

Saía para o trabalho na manhã da última sexta-feira ouvindo a rádio do principal veículo de notícia da região sul do país. O locutor, um senhor extremamente conservador, informa que uma mulher de 41 anos, havia sido provavelmente atropelada, nas imediações da av. Bento Gonçalves, uma das mais movimentadas de Porto Alegre. Fiquei mais atenta que o habitual por se tratar de meu trajeto até o trabalho, e, desejando não ver a pessoa estendida ao chão, concluí que já teria sido socorrida até eu chegar ao local, ou, se tivesse, infelizmente, morrido, a pobre mulher estaria coberta.

Quando eu me aproximava, cerca de uma sinaleira antes, o repórter que estava no local transmite ao locutor a informação de que agora apurara mais detalhes: tratava-se de uma presa do albergue anexo ao presídio feminino Madre Pelletier que havia sido baleada. Os policiais da Brigada Militar, inclusive, haviam tentado reanimá-la, mas não houve como salvar-lhe a vida.

Ao devolver a palavra ao radialista, este não teceu um único comentário. Justo ele que tem sempre o discurso alarmista dos altos índices de criminalidade na ponta da língua, justo ele que sempre deseja pena de morte àqueles que tiram vidas, nesta manhã de sexta-feira, emudeceu. Ao saber que a vítima do homicídio era uma detenta, passou a entender o ocorrido de outra forma, certamente pensando que, pela primeira vez a “criminalidade que atormenta a capital gaúcha” estava a seu favor. Agora um criminoso tirava a vida de outro e, assim, ao menos, não era o corpo de um “homem de bem” que no cordão daquela calçada jazia.

Keith Haring, Sem Título. 1982.
Keith Haring, Sem Título. 1982.

Pensava sobre isso quando cheguei à av. Bento Gonçalves. Ao olhar pela janela vi que a poucos metros do meu carro estava a mulher caída. Os pés na calçada, cruzados um sobre o outro, o resto do corpo na via pública, de bruços. O sangue escorria perto da cabeça. Diferentemente do que eu supunha não havia nada cobrindo o corpo, ele se encontrava intacto desde o momento em que tombara, provavelmente. O carro da Polícia estava próximo e seus agentes demonstravam-se bastante preocupados em organizar o trânsito, afinal, era a hora do cidadão honesto ir trabalhar. A posição em que a mulher estava indicava que nenhuma tentativa de reanimação havia sido realizada, distintamente do que o veículo de comunicação, aquele formador de opinião do povo gaúcho, havia relatado.

Ainda tocada pela imagem, pelo sentimento de impotência, pela vida que acabara de acabar, adentro o portão da instituição em que leciono. E antes que eu tivesse tempo de estacionar e desligar o rádio, o locutor trocara de assunto: comentava em tom bastante incisivo o absurdo que é o maltrato de animais. Mencionava muito orgulhoso que é ferveroso defensor da causa e que, certa vez, chegou a bater na porta de um cidadão para dizer-lhe, com todas as letras, que precisava cuidar de seu cão. Que o pobre bichinho ficara um final de semana inteiro, de verão, sem água e isso, ah, isso ele jamais poderia tolerar.

Isso o que narro aconteceu já há alguns anos. Mas me veio novamente à lembrança porque apesar do enorme tempo cronológico desde esse evento, na verdade, nada mudou. Se manteve e se agudizou mais e mais no imaginário de uma sociedade que segue pensando que há bons e maus, que há vidas mais importantes que outras, que há corpos que não merecem viver.

Desde o primeiro dia de 2017 – o ano que nasceu com a incumbência de amenizar os danos trazidos à democracia brasileira em 2016 – 133 presos foram mortos em 8 estados brasileiros. Em 15 dias ultrapassou-se o número de mortos em uma das maiores chacinas que o país vivenciou, Carandiru. Brigas entre facções criminosas motivariam tamanha violência, problemas que não surgem em si mesmos, mas que se originam do encarceramento hiperbólico que o quarto país que mais prende no mundo continua realizando.

Pessoas depositadas em locais imundos e completamente insalubres, pessoas que passam muito frio, muito calor, muita fome, pessoas que sofrem torturas do Estado ou à omissão do Estado, que deixam a dignidade do lado de fora dos muros das instituições totais.

Mas como o locutor da rádio, o Estado também se calou diante de tantas vidas perdidas. Ou melhor, resolveu falar o secretário nacional da juventude do ilegítimo governo federal e afirmou aquilo que muitos pensaram mas conseguiram não dizer: “deveria haver mais mortes, bom mesmo seria ocorrer uma chacina por semana nas penitenciárias brasileiras”. Decerto, exatamente o mesmo pensou o radialista gaúcho ao concluir que a mulher estirada ao chão não era uma pessoa comum e muito menos havia sido atropelada, se tratava de outra espécie de gente. Um tipo que não merece valor, alguém que, definitivamente, não se compara a ele próprio ou aos seus entes queridos. É uma vida que não importa, nem mesmo como o dado frio de uma realidade dura.

O jovem secretário ou o senhor radialista operam em uma lógica em que se perde a humanidade em relação àqueles tomados por desumanos porque criminalizados. Ambos odeiam essas pessoas, desejam a sua morte e a limpeza das ruas e dos cárceres. Deixam de comover-se ao perceberem na tragédia um homem morto ou 133, comemoram a vida que finda no cordão de uma calçada ao mesmo tempo que borrifam perfume em seus gatinhos e alimentam seus cachorros com filé mignon.

Há uma inversão da racionalidade, inversão esta que impõe deliberadamente que há seres humanos que valem menos que animais, menos que outros, menos que tudo. Às avessas do poema de Manuel Bandeira, talvez o secretário de governo ou o jornalista fossem inundados de alguma compaixão se reconhecessem nesses sujeitos aprisionados e mortos, um bicho, meu deus, e não um homem.

 

 

 

Mariana de Assis Brasil e Weigert

É atualmente professora substituta de Direito Penal e Criminologia na Faculdade Nacional de Direito/UFRJ. Graduada em Direito pela PUCRS; mestre em Criminologia e Execução Penal pela Universidad Autónoma de Barcelona e igualmente em Ciências Criminais pela PUCRS; doutora em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS, com pesquisa realizada na Università di Bologna. Autora dos livros “Uso de Drogas e Sistema Penal: entre o proibicionismo e a redução de danos” (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009) e “Medidas de Segurança e Reforma Psiquiátrica: silêncios e invisibilidades dos sujeitos nos manicômios judiciais brasileiros” (Florianópolis: Empório do Direito, prelo); e co-autora de “Sofrimento e Clausura no Brasil Contemporâneo: estudos críticos sobre fundamentos e alternativas as penas e medidas de segurança” (Florianópolis: Empório do Direito, 2016).

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