Vidas Cindidas

Vidas Cindidas

Romance de Ingo Schulze expõe a complexa realidade vivida pelos alemães no período da queda do Muro

Helga Dressel

 A história de Vidas Novas seria simples, não fosse a sofisticada estratégia narrativa: um romance epistolográfico, camuflado como edição crítica e comentada de uma coletânea de cartas, complementada por alguns manuscritos literários e organizada por um tal Ingo Schulze. À primeira vista, o leitor pode achar óbvio, pois na capa do livro consta o nome daquele escritor alemão de quem talvez já tenha lido algum romance. Porém, o editor das cartas não corresponde ao escritor da capa. Trata-se de um personagem com o mesmo nome, ou seja, o escritor Ingo Schulze serve-se do editor fictício Ingo Schulze. Aí está a magnífica solução para manter a polifonia e a multiperspectividade da narrativa.

O editor fictício I.S. fica fascinado por Enrico (“Heinrich”) Türmer, cidadão da República Democrática Alemã, jornalista acidental e magnata de súbita carreira pós-queda do Muro que, após a falência de seu império empresarial, nunca mais foi visto. I.S. resolve reunir a correspondência esparsa desse homem e descobre até manuscritos literários que revelam inclusive uma despercebida ambição literária de Enrico, ambição esta, no entanto, fracassada.

As cartas datam do primeiro semestre de 1990, isto é, do período entre a queda do Muro e a reunificação, ou, para ser mais preciso, época da introdução da moeda ocidental forte na ainda RDA em meados de 1990. São três os destinatários: à irmã Vera, emigrada para o lado ocidental, comenta da vida pessoal e profissional; ao colega de colégio Johann, pastor formado e ex-militante do movimento dos cidadãos, conta as precipitações do desenvolvimento econômico; a Nicoletta, fotógrafa ocidental e inatingível caso amoroso, formula sua confissão: uma retrospectiva de sua gênese alemã-oriental.

Enrico é a não ação em pessoa. Sonha de olhos abertos, e nesses sonhos projeta-se a si mesmo como autor dissidente, proibido no lado de cá do Muro, publicado no outro, e famoso em ambos. Deseja a fama, mas não faz nada para conquistá-la. Como observador literário, fala de si próprio, mas, ao fazê-lo, manipula do modo como melhor lhe convém. Depois, porém, deixa-se seduzir pelo charme mefistofélico do Barão de Barrista, que surge como introdutor ao sistema ocidental e capitalista. Feito um manipulador de títeres onipoderoso, o Barão coordena os ritos de iniciação à nova ordem. Nessa parte da narrativa, no período pós-queda, o romance serve-se do modelo romântico: a narrativa volta e meia torna-se fantasmagórica, entre sonho e pesadelo, contos de fadas e história de horror. Ocorre que nesse tempo entre os tempos, entre pré e pós-queda, tudo parece possível. E, seguindo o exemplo faustiano, Enrico não conhece escrúpulos.

Deixando de lado as muitas alusões intertextuais, mencionemos apenas esta: Enrico é versão italiana do nome alemão Heinrich, nome pelo qual Margarida conhece, e no final já não reconhece, o seu Fausto, quando grita: “Enrique, tenho pavor de ti”.  

A eclosão de um novo mundo

Como nomear os acontecimentos de 1989? Na Alemanha, várias denominações concorrem até hoje: no contexto político, histórico, acadêmico e entre os ex-militantes da oposição fala-se em “revolução pacífica”, compreendendo a queda do Muro como consequência de um movimento engajado, corajoso e persistente. No linguajar cotidiano, porém, permanece corriqueira a expressão “a virada” (die Wende), demonstrando uma percepção da queda do Muro como feitio de destino ou força.

A virada de 1989-1990 marca uma mudança de eras. Em entrevistas, Ingo Schulze não cansa de chamar atenção para o fato de que não foi somente a RDA que sumiu do mapa, mas também a antiga República Federal da Alemanha (RFA). O que temos hoje é algo terceiro. Ninguém estava contando com isso, nem o movimento de oposição da RDA e menos ainda os cidadãos da antiga RFA, tomados de surpresa. De um mundo manejável por estar bem arrumado entre leste e oeste, comunismo e capitalismo, surge um novo mundo, desordenado e transbordante, de uma globalização sem fim.

É grande mérito do romance conseguir manter a complexidade dessa vivência e os muitos desafios que o cidadão oriental teve de enfrentar. Detalhes supostamente óbvios para quem está por dentro, mas inexistentes para quem olha de fora. O romance consegue traduzir, para quem quiser saber, a realidade daqueles mundos extintos. 

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