Deixar de ser nação

Deixar de ser nação
(Foto: Ralph Baiker)

 

Uma das transformações mais expressivas a ser propostas pelo Processo constitucional chileno é o fim do Estado-nação. A noção de um Estado Plurinacional é algo que se afirma como consenso dentre os vários grupos que aparecem como motor das demandas de transformação social. Ela é impulsionada pelos constituintes representantes dos povos originários. Pois além de paritária, a constituinte chilena garantiu 17 assentos de 155 aos Mapuches, Aymaras, Atacameños, Collas, Quechuas, Rapa Nuis, Yámanas, Kawashkars, Diaguitas e aos Changos. 

“Um Estado Plurinacional significa assumir que há povos pré-existentes ao estado e que, por isso, têm direito ao reconhecimento de suas criações sociais e sua livre-determinação”, diz Enrique Antileo, antropólogo e militante da causa mapuche : “Ele significa também reconhecer que nossos povos foram objetos de usurpação e roubo. Ou seja, o estado chileno foi fundado no roubo”.

O antropólogo Enrique Antileo (Foto: Ralph Baiker)

De fato, a invenção jurídica do Estado Plurinacional, cuja matriz, ao menos nesse contexto, vem da Bolívia, quebra de forma radical a tríade Estado-nação-povo que se naturalizou no interior da experiência política moderna: “A plurinacionalidade é o mínimo que merecemos”, diz Daniela Catrileo, escritora, feminista e ativista mapuche. Ela lembra que os movimentos chilenos estão divididos entre aqueles que exigem autonomia como separação e aqueles que procuram conjugar as possibilidade da plurinacionalidade: “Eu passei de uma posição a outra”, diz Daniela.

Por um lado, o reconhecimento de que a formação do Estado nacional foi baseada em uma usurpação é forma de colocar a noção legitimidade acima da noção de legalidade. A propriedade, legal por ser reconhecida por lei atual, pode ser compreendida como ilegítima e objeto de devolução ou responsável por reparação. De fato, essa reconfiguração global da propriedade implica reconfiguração profunda do país e de sua autocompreensão. O que certamente não será feito sem resistência.

No dia 9 de março, o prédio da Assembleia constituinte chilena foi cercado por charretes clássicas e uma infinidade de huasos a cavalo. “Huasos” são camponeses que em muito se assemelham aos nossos gaúchos. Paramentados de suas roupas típicas, eles se manifestavam contra projetos constitucionais que visavam proibir o rodeio. Mas não só: “Todo povo tem seu folclore. Querem destruir o nosso, a nossa bandeira, o nosso hino, as nossas tradições”, diz Lopèz Hortero, um dos muitos manifestante presentes no local.

Assembleia Constituinte chilena em sessão (Foto: Ralph Baiker)

Ou seja, essa colocação em questão dos dispositivos de propriedade que constituem a base jurídica do país passa necessariamente pela problematização do que é efetivamente “próprio” a um território que se descobre habitado por uma multiplicidade de povos que não precisaram do Estado-nação para começar a existir. O que nos explica porque Enrique lembrará que: “aceitar que somos pré-existentes ao estado chileno significa também que queremos continuar a ser povos, que somos povos capazes de criar futuro”.

Essa capacidade de criar futuro traz uma série de novos desafios. Talvez um dos mais complexos diga respeito ao tensionamento nos modos de produção. A pré-existência de certos povos não se mede apenas a partir dos dispositivos jurídicos do Estado-nação, mas também em relação às exigência produtivas e extrativistas do processo capitalista de acumulação e de produção de valor. Mas o que pode então se realizar na época de um governo que, como diz o próprio Enrique: “tentará navegar suavemente, produzido mudanças de forma gradual” ?

De fato, a luta antiextrativista é um eixo maior de debates em um país exportador de matérias primas, principalmente minerais como o cobre, que representa 51,9% das exportações chilenas. Depois vem peixe (3,5%) e polpa de celulose química (2,8%). Tanto a região norte, por causa do cobre, quanto a região sul, por causa da indústria de celulose, conhecem a brutalidade do impacto ambiental do extrativismo.

Cristina Dorador é deputada constituinte por Antofagasta. Como cientista e ativista ecológica, ela insiste que: “desde que fomos constituídos como nação fomos compreendidos como lugares de desenvolvimento, não como lugares de produção do desenvolvimento humano”. Isso é particularmente claro em um país que, por ter sido o primeiro laboratório mundial do neoliberalismo, tem atualmente até mesmo sua água privatizada e transformada em processo de produção de valor.

A deputada constituinte Cristina Dorador (Foto: Ralph Baiker)

Na verdade, o Chile é o único país no mundo onde a água está privatizada. O resultado disso é, por exemplo, uma comuna de 30 mil habitantes como Petorca, sem água potável e dependente de caminhões-pipas para sua sobrevivência. Alguns distritos dessa comuna têm água apenas por 45 minutos por dia. Por isso, um dos pontos principais da luta de Cristina é a transformação da água em Direito Fundamental.

Quando começaram, as manifestações de 2019 logo encontraram uma palavra que, à sua maneira, funcionou como chave para a descrição do espírito geral, a saber, dignidade. Não é um acaso que a Praça Italia, ponto no qual as manifestações partiam, tenha sido rebatizada como “Praça Dignidade”. Isso não é sem relações com o que ocorreu anos antes em outro processo de sublevação popular, no caso, a Primavera Árabe. Nesse momento, a palavra fora: “respeito”.

Talvez essas palavras explicitem um eixo central das lutas políticas de nossa época. Lutas feitas em nome da dignidade, do respeito, compreendem que a condição de sujeito político não está assegurada. Não se tratam apenas de questões ligadas à integridade pessoal. Em latim, como Cícero não cansou de expor, dignitas tem uma proximidade com autoritas. Ou seja, com o exercício legítimo da capacidade de decidir. Ela também está presente em “dignatário”, como esse que representa um corpo social para o estrangeiro. Um movimento feito por pessoas que exigem dignidade é um movimento que luta por mostrar que todas as pessoas têm autoritas por expressarem um mesmo corpo social por vir.

Via chilena: a América Latina criando novos caminhos. Durante a semana da posse de Gabriel Boric à presidência do Chile, a Cult fornecerá artigos diários escritos a partir do relatos de ativistas, membros do governo e intelectuais chilenas e chilenos. Um momento importante da história do nosso continente descrito a partir de quem está lá.

Vladimir Safatle é Professor Titular da USP e atualmente fellowship do The New Institute/ Hamburgo.


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(1) Comentário

  1. A força indigena boliviana preservada pelo Estado plurinacional é a experiência social mais potente que já vi!!! Que a america latina a tome como exemplo e reencontre a força de seus povos originários!

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