Lutar para mudar: como o Chile chegou até aqui

Lutar para mudar: como o Chile chegou até aqui
(Foto: Ralph Baiker)

 

Talvez um dia seremos capazes de compreender o quanto a reflexão política exige mobilizar a noção de “lugar”. Os acontecimentos políticos ocorrem em um lugar e, mesmo quando ocorrem simultaneamente em vários lugares, essa variedade sempre preserva sua heterogeneidade, sempre preserva a possibilidade de cada um desses lugares específicos se tornarem pontos de partida de sequências autônomas de novos acontecimentos.

Bem, pode parecer certo truísmo começar um texto dizendo algo aparentemente trivial, a saber, que acontecimentos ocorrem em um lugar. Mas dessa trivialidade decorrem consequências nem sempre muito seguidas. Uma delas é que pensar um acontecimento político exige o esforço de pensar a partir de seu lugar. Se para pessoas normais isso parece um segundo truísmo, para professores de filosofia isso pode significar andar de cabeça para baixo. Pois isso implica admitir que os lugares pensam e que, se quisermos ouvir tais pensamentos, é necessário se deslocar. Ir e ouvir as pessoas, falar pouco, deixar o pensamento ser violentado pelo que você não esperava. De fato, eu sempre achei que a reflexão política seria muito melhor se as pessoas falassem menos, ouvissem mais e viajassem igualmente mais. Esse é um pouco o espirito dessa série de artigos diários sobre as transformações sociais e políticas pelas quais o Chile está a passar.

Em 11 de março, o Chile terá um novo governo. Mas essa não é apenas mais uma troca de governo em um sistema de alternância típico da democracia liberal. Esse é o início de um momento tenso, cheio de dinâmicas imprevisíveis. Algo singular se lembrarmos do que vivemos em nosso momento histórico atual, marcado pela paralisia das forças de transformação estrutural, pela retração da “força ofensiva” da classe trabalhadora (como um dia disse Marx) contra o Capital e por aquilo que outros antes de nós chamaram de “retração de horizontes de expectativas”. Por isso nunca será sem surpresa ouvir afirmações como essa, do professor do Departamento de Filosofia da Universidade do Chile Rodrigo Karmy, “Esse é o fim de um ciclo histórico pois se abre agora um novo ciclo de lutas”.

O professor Rodrigo Karmy (Foto: Ralph Baiker)

O fato é que, durante meses, várias foram as análises que vimos sobre o que está a ocorrer e sobre o que pode ocorrer no Chile. Depois de uma insurreição popular que acabou por se realizar em um processo constitucional único no mundo, pois conquistado contra o governo em curso e atravessado por uma eleição geral no meio de seu exercício, o Chile se tornou um dos poucos lugares no mundo onde a imaginação política tem espaço institucional para entrar em ação, para pensar outras formas de vida social. Para entender como essa imaginação política está a operar, a única forma efetivamente honesta era ir para o lugar no qual ela se desdobra e ouvir ativistas, políticos, acadêmicos, médicos, sindicalistas.

O que acontece antes da explosão

 

Patrício Bustamante é médico, diretor do Departamento de Tecnologia médica da Universidade do Chile. Sua especialidade é trauma ocular. Durante a insurreição popular de 2019, ele se viu na linha de frente das revoltas sociais quando teve que receber casos, cada vez mais constantes, de pessoas vítimas de balas de borracha nos olhos. No Chile, 450 pessoas ficaram cegas ao menos de um olho como resultado da ação policial. A ação é conhecida também dos brasileiros, vimos isso em 2013, mas não nessa escala. Ela é um procedimento relativamente padrão de forças policiais atualmente. O que não deixa de ter sua ironia macabra. A metáfora é muito explícita: o poder age cegando as pessoas, retirando delas seus sentidos, mutilando seus corpos: “Tivemos casos de pessoas que perderam três sentidos, a visão, o olfato, a audição”.

O médico Patrício Bustamante (Foto: Ralph Baiker)

Patrício descreve uma situação de guerra vivida em seu hospital em 2019. Situado perto do epicentro dos protestos, a saber, a Praça Itália, hoje Praça Dignidad, o hospital, que recebia levas de pessoas atacadas por balas que não tinham apenas borracha, recebeu também bombas de gás lacrimogêneo em seus corredores. Algo não muito diferente do que descreve Marcela Leiva, ativista e integrante do movimento No+AFP (Não mais Associações de Fundos de Pensão), que luta pelo fim do sistema de pensões privado, vendido em outras partes do mundo como a renovação do sistema previdenciário através da capitalização individual. Organizando acolhimento nas ruas da vizinhança, ela lembra do dia em que haviam mais de trinta corpos em sua rua, recebendo cuidados médicos: “era uma situação de guerra”.

Mas isso nos leva a perguntar como se sustenta uma situação dessa natureza. O que faz com que pessoas, em certas circunstâncias, não recuem, mesmo diante de 45 mortos pela repressão policial, mesmo diante de ver sua rua se transformar em hospital de guerra ? “Conseguimos essa coisa única que é mudar através de protestos, como se disséssemos que não vamos mais aguentar qualquer coisa”, diz Patrício. “Eu não tenho medo do que vai ocorrer daqui para frente”. O que impressiona é ouvir como essa frase vem com um sorriso.

Jaime Bassa, deputado constituinte e vice-presidente do Processo constitucional em seu primeiro mandato, lembra que, durante 30 anos, o Chile foi atravessado por várias revoltas que expressavam o descontentamento contra formas de reprodução social. Revoltas dos estudantes, revoltas contra o sistema de pensões, conflitos socio-ambientais: “Mas era necessário que muitas pessoas se reconhecessem como portadoras do mesmo mal-estar”.

O deputado Jaime Bassa (Foto: Ralph Baiker)

Para tanto, foi necessário um certo “auxílio” vindo da violência do Estado. Em meio à escalada da revolta, o governo Piñera decretou Estado de exceção, mostrando como, quando se sente acuando, o poder de Estado “democrático” age como se estivesse em situação de ditadura: “Percebemos como, em situações como essas, as coisas não havia efetivamente mudado”.

A situação de exceção teve a capacidade de unificar as demandas e levá-las a outro estágio. O mesmo mal-estar apareceu na forma de um poder que ataca todos e todas sem distinção. O resultado mais concreto dessa violência foi levar os manifestantes a exigirem um processo constituinte que pudesse livrar o país da Constituição de 1980, herança do governo Pinochet.

Esse efeito catalizador da violência do Estado foi também lembrada por Marcela Leiva quando procurou explicar de onde veio a capacidade de organização popular durante os dias de revolta em 2019. Em alguns dias, apareceram grupos de cuidados de feridos, de organização de refeições, ou seja, toda uma estrutura fundamental para o suporte à continuidade das lutas.

Marcela lembra do grupos de organização de vizinhança chamados no Chile de “juntas de vizinhos” e que tem estatuto legal. Muitas vezes eixos de estruturas disciplinares na vida de localidades, em certas situações algumas juntas se tornaram embriões para estruturas comunitárias de apoio às revoltas. Ou seja, a política não conhece espaço vazio. Sempre se trata de um agenciamento que se apoia em processos já existentes de organização popular, mesmo que tal organização tenha seus limites.

A ativista Marcela Leiva (Foto: Ralph Baiker)

Esse é um dado significativo. Em situações nas quais as demandas sociais são múltiplas e heterogêneas, frutos de uma multiplicidade de atores sociais autônomos entre si, é muitas vezes um fator externo que permite a unificação das demandas. Quando esse fator não é um princípio unificador de lutas, um horizonte utópico comum de transformações , a violência do Estado pode servir de força de coesão. Ela funciona por contraposição generalizada.

A constituição herdada do período Pinochet era peça fundamental da reconstrução neoliberal de laboratório que era a sociedade chilena. Ela chegava, por exemplo, a impedir o estado de constituir empresas públicas, levando ao que Bassa descreve como “mercantilização da vida cotidiana”.

Bassa e Rodrigo Karmy reconhecem que o processo constituinte nasceu como uma tentativa de controlar a insurreição de 2019: “Foi o acordo que permitiu a permanência de Piñera até o fim de seu mandato”, diz Karmy. Não seria a primeira vez que, diante de uma insurreição popular, acena-se com a promessa de uma constituinte como forma de tirar o povo das ruas.

Quem conhece a história da Revolução Russa em seus primeiros meses sabe bem disso. Tanto que a exigência de conquistar 2/3 dos votos na Câmara Constitucional para escrever as leis fora vista como um forma de travar todo o processo. Mas, de maneira completamente inesperada, a direita chilena sequer conseguiu 1/3 de representantes. Ou seja, a armadilha não funcionou. O que fez com que o Chile tivesse um processo constituinte profundamente enraizado no horizonte de sua sublevação popular.

Para onde esse processo pode levar o Chile, eis algo que é difícil saber. Luis Mesina, líder sindical crítico ao governo atual e principal porta-voz do movimento NO+AFP, crê que várias capitulações virão: “A esquerda que temos é uma esquerda sem princípios, que acredita ser capaz de criar um capitalismo um pouco mais humano, que renunciou a lutar por uma nova forma de vida social”.

O líder sindical Luis Mesina (Foto Ralph Baiker)

Ele lembra de recuos na luta pelo fim do sistema de pensões privados e desconfia de um processo que não se orienta pelo conflito entre Capital e trabalho. Bassa insiste que está a se construir um país baseado em três princípios, a saber, “uma democracia paritária, plurinacional e multicultural”. Ele reconhece que será uma transformação lenta para produzir o que ele chama de “novos espaços sociais de coesão”.

(Foto: Ralph Baiker)

Via chilena: a América Latina criando novos caminhos. Durante a semana da posse de Gabriel Boric à presidência do Chile, a Cult fornecerá artigos diários escritos a partir do relatos de ativistas, membros do governo e intelectuais chilenas e chilenos. Um momento importante da história do nosso continente descrito a partir de quem está lá.

Vladimir Safatle é Professor Titular da USP e atualmente fellowship do The New Institute/ Hamburgo.


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