A Verdade militar, de Alexandre Dal Farra e Tablado de Arruar
Alaxendre Dal Farra e seu grupo de atores e diretores, o Tablado de Arruar, de São Paulo, já se dedicaram, bem antes da catástrofe de agora, à força política regressiva e intensa que movia um pastor evangélico popular do Brasil, em Matheus, 10. Também já chegaram em lugares obscuros e primitivos da política, refletindo os impasses que se tornavam definitivos com a chegada do partido de esquerda de massas ao poder, em sociedade de classes, consumo e desindustrialização permanente, na trilogia Abnegação.
Já observaram a corrosão do caráter animada e nova de classe média brasileira, entre os negócios, a política e o crime, em mais de uma peça. Até os impasses de se poder ou não falar da história negra do país, sendo sempre o racista por princípio fixado, da cultura progressista entre nós, foram investigados em Branco. Sempre correndo contra o tempo, e no tempo, o grupo mergulhou agora em uma nomeação do Exército Brasileiro, e sua relação eterna, mesmo que proibida, com a política do país.
Ridículo, choque, metáfora, grotesco, história, reflexivo, autoritário, investigativo, cômico e especulativo, são muitos os modos que Verdade, encenada há dois meses em São Paulo, mobilizou para pensar a presença do Exército em nossa vida no presente histórico, o processo “sem sujeito” de ocupação da política e do Estado pelas forças armadas desde 2016, suas ações estratégicas tendencialmente bolsonaristas e, principalmente, no meu entender, o exercício aberto de questionamento do que poderíamos chamar de uma teoria da corporação, uma filosofia do que é “o militar”.
Entre a história degradante da democracia no Brasil reenquadrada por estratégias e táticas militares de seu próprio avanço sobre a vida política e o trabalho de conceber uma metafísica do militar, a peça marca com força os passos históricos da nova-velha presença das forças armadas no país, ao passo em que desdobra em monólogos intensos, de valor teórico, sua filosofia do militar.
O estranho processo brasileiro de descida às ruas sob disfarce, que culminou com um general de quatro estrelas presente, sem explicação, na comitiva – mas sempre tentando tornar-se ausente – de Bolsonaro na cidade do interior de Minas Gerais onde ele sofreria o excêntrico e decisivo atentado, é articulado à investigação dos elementos puros, por assim dizer, do que seria o militar, ou, como diz a peça, “o que há de militar no militar”.
Surgem os monólogos, que vão da reflexão ao desespero de fardados e não fardados, e esquadrinham um sistema de estranhezas e violências, meio histórico meio transcendental: a vida como estratégia, a presença social forte como ausência, a diferenciação radical de tudo que diz respeito à vida civil e seus critérios, a valorização da posição extrema do controle, da hierarquia absoluta e do direito pleno ao extermínio da diferença, a complacência com a submissão e com a morte, o desejo de agir sem deixar marcas da própria presença, o lugar negativo absoluto, descomprometido da vida, do militar como coisa em si. Pureza, limpeza, autonomia arrogante, recusa do mundo da vida, o sonho do templo puro e vazio do poder transcendente, o militar como o limiar de um deus definitivamente ausente.
Se em outros mundos históricos e teatros políticos, reis, príncipes ou industriais e burgueses, gangsteres, deram espaço para a sua investigação pelo teatro, como investigação e poesia dos sujeitos do poder, do poder nos sujeitos, podemos bem dizer que o príncipe do reino podre do Brasil pode ser pensado como o nosso militar, o Exército brasileiro, nossos generais, tão espertos, tão idiotas. Se nos é cara a depreciação e a apresentação do ridículo político, e mesmo humano, de nossos íntimos e comuns Generais Villas Boas, Heleno, Mourão, Pujol, Etchegoyen e mais outros, se podemos nos vingar do poder e da tortura incorporada historicamente com a radicalidade da inteligência que nos permite a derrisão, a caricatura e o desprezo, que a peça demonstra serem simétricos, mas diferentes, ao deles por nós, a dimensão reflexiva individual dos personagens, sua pergunta sobre a própria existência, e sua resposta, que com sistema escapa à vida humana comum escapando a eles próprios, interessa um tanto mais do que a forte impressão do grotesco histórico sem limites do caso geral.
Entre a vida alienada, o cálculo permanente, o grito como palavra, o ódio pelo companheiro, a disputa política como dissimulação absoluta e o entendimento de nossas vidas civis como espécie de lama, mole e sem caráter, Verdade iluminou uma verdade obscura que nos diz respeito e não devia. A da força simples e de raiz da coisa infinitamente positiva do militar entre nós.
Tales Ab’Sáber é psicanalista e ensaísta, doutor em Psicologia Clínica pela USP e professor da Unifesp. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.