Vazios sonoros

Vazios sonoros
Foto: Aziz Acharki/Unsplash

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de agosto de 2020 é “solidão”.


te falando, o síndico bateu lá, na porta de casa. Eu não sei muito bem o que é, só pode ser solidão, sabe?

Eu, por exemplo, já fui casado três vezes. Acho que não suportaria passar esses meses enfurnado em casa com ninguém. Não, com certeza não, no meio de uma pandemia…

Às vezes pesa, tô gostando que o futebol voltou, dá pra passar o tempo. Tem uns desocupados que vão passar o tempo no supermercado, aglomerando, já falei que vou denunciar, um dia perco a paciência e denuncio, denuncio em nome dos funcionários que passam o dia todo lá naquele caixote. Não pode.

Mas isso de perturbar os outros por não ter o que fazer, ah, isso é uma covardia, não sei o porquê da reclamação.

Minha música estava alta, tudo bem, eu até admito que escuto música alta. Mas é Noel Rosa, Chico Buarque, Pixinguinha. Fiquei pensando, sabe, nessa loucura que a gente tá vivendo, se não foi justo pela qualidade da música?

É, se fosse uma música bem barulhenta, não alta, mas barulhenta, acho que não ia ter queixa, de repente montavam até uma festa ali embaixo como desculpa.

Ouvir música alta é coisa de quem mora sozinho, tem a ver com uma solidão, sim. Vai ver, preenche os espaços. Muito silêncio assusta, já passamos o dia todo conversando com a gente mesmo, tem hora que já não tem nem mais o que dizer, até o inconsciente acho que cansa. Ou descansa.

No meu caso tem que descansar mesmo, porque é cada sonho, cada pesadelo antigo que passeia comigo na madrugada… Engraçado, lembrei agora que eu fico, num desses sonhos, um tempo infinito com a mão direita para o alto, esperando alguma coisa. Alguém? Ninguém aparece.

Quando desisto de esperar e baixo a mão, acordo.

Olha, eu passei os últimos dez anos tendo que ouvir a Ave Maria, pontualmente às seis da tarde, em decibéis inalcançáveis desse apê aqui de cima. Aí foi rareando a frequência – cheguei a estranhar -, até que parou.

Pois acredita que a queixa vem do mesmo apartamento, do filho dessa senhorinha carola? E logo com o Noel. Se fosse reclamação do síndico, vá lá. Está no direito.

Mas o que eu não me conformo é que a velhinha é surda.

Rodrigo Tupinambá Carvão é professor de educação física, psicanalista e autor independente.

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