Uma última e popular canção de rua, a do arbítrio
"Canção do arbítrio" salta o que há de mais singular no silêncio dos poemas de Ricardo Rizzo (Arte: Revista CULT)
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Quando você ouvir
Essa canção que eu fiz
Não esqueça de sonhar
Até amanhã, até amanhã, até amanhã
– Lô Borges / Ronaldo Bastos
(Canção Postal, 1972)
Walter Benjamin, impressionado com as “explosões do inconsciente” e com os usos deliberados da “imaginação”, escreve, em 1929, um ensaio de força em torno do surrealismo na França. Mesmo que, depois, ele se surpreenda com o rompimento de alguns surrealistas com aquele comunismo que reclamava e com o “beco sem saída” a que o movimento chegou, não se furta em ampliar o sentido dessas explosões no que toma como “iluminação profana”. Em meio a essa ampliação, pensa que há – principalmente em Breton e seu Nadja –, uma “experiência revolucionária” que se expande entre “tristes viagens de trem, de tardes de domingo desoladas em bairros operários das grandes cidades, do primeiro olhar pelas janelas molhadas da chuva numa nova casa.” E que tudo isso faz explodir uma força da atmosfera que se esconde em cada uma dessas pequenas coisas que, muitas vezes, se equilibram entre escravizantes e escravizadas numa miséria infinita. E reforça, como um enfrentamento a essa miséria: “Imagine-se como seria uma vida que, num momento decisivo, se deixasse levar pela última e mais popular canção de rua”.
Tocar os poemas de Ricardo Rizzo, nascido em Juiz de Fora (1981), principalmente os de País em branco (Ateliê Editorial, 2007) e Estado de despejo (Patuá, 2014), pode produzir uma brenha e uma brecha em meio a essa miséria das coisas e, ainda, alargar o sentido de uma explosão, silenciosa como é cada um de seus poemas e livros, com uma força da imaginação que refaz o contrassenso de um pessimismo óbvio para o fim do mundo, para o fim de um mundo, para o fim de uns mundos. É Ernst Bloch, ao constituir uma projeção com o seu Princípio Esperança (1954-59), quem nos lembra que estamos o tempo inteiro precipitados na miséria. E afirma que, numa luta efetiva contra a natureza, as primeiras tentativas de saída dessa condição, em uma disposição utópica, se davam através da pele nua que forçava decididamente o homem a inventar: descobrir a terra é inventar mundos, ou seja, engendrar estranheza e um inespecífico e não simplesmente gerar um mesmo ou um próprio. Inventar alguma coisa para prolongar o tamanho do punho, com algo que não cresceu nele, como uma clava ou um machado de pedra, por exemplo, já era no mínimo um bom artifício contra os lobos. Um lance infinito: descobrir maneiras impossíveis de colocar as coisas da terra ao nosso alcance. Depois indica que, cobertos do que não nos é próprio, mas sim do que vem a partir de fora e nos anula a pele, confrontamos um mundo retesado enquanto tudo aquilo que remete à invenção, sem entranha ou abismo, passa a solicitar apenas finalidade, desfecho, objetivo; isto que provoca apenas a nulidade de toda invenção.
Mais recente, em Canção do arbítrio (Patuá, 2018), Ricardo Rizzo retoma deliberadamente a sugestão de Benjamin, a de um momento decisivo refeito numa vida que se deixa tocar por uma canção popular de rua e, ao mesmo tempo, estica o gesto da canção até a linha impossível de uma ideia severa de estudo. Anota no poema que abre e que dá título ao livro: “filho único / da razão pura / com o cansaço”; “por alguns dias / à caça de seu coração / lança cordas de fracasso / contra o rastro.” e, mais adiante, “A mercadoria abre passagem / entre esses objetos / ex-vivos / como se folheasse livros / finalmente devolvidos / à biblioteca incendiada.” Há um entendimento de quem se debruça mais a fundo ao dispêndio da biblioteca que pegou fogo e com rara paciência diante de uma vida sem tempo (rastro, passado, peso, fracasso, ex-vivos etc.). Basta ver e ler o trabalho empenhado que desenvolveu e publicou em torno de uma leitura crítica de José de Alencar, Sobre rochedos movediços: deliberações e hierarquia no pensamento político de José de Alencar (Hucitec/Fapesp, 2012), para reposicionar e reconfigurar algumas ações e textos daquele que projetara um cinema, também de brenha e brecha, com seu Iracema: “tudo passa sobre a terra”.
Neste Canção do arbítrio salta o que há de mais singular no silêncio dos poemas de Ricardo Rizzo: ao nomear a sua tarefa com o poema de “estudo” procura, radicalmente, desfazer a nomeação daquele que cumpre a tarefa e que seria ou é, sempre numa condição equívoca, “o poeta”. A lista de títulos produz, quase como uma telecinesia, um movimento de penetração à distância: “Estudo com latidos e metáforas”, “Estudo com uma grafia aflitiva”, Estudo sobre uma abertura”, “Estudo para uma anexação”, “Estudo para uma conservação”, “Estudo para uma entrevista”, “Estudo para um outro mundo”, “Estudo para uma circuncisão”, “Estudo para um estado curdo”, “Estudo para um sistema de metas” e “Estudo para uma licença ambiental”. Depois, aparecem “Campo dos Afonsos”, “Telegrama para Fernando Brant”, “Travesti negra responde” e “O cão vida”. Para Giorgio Agamben, o estudo é uma condição da existência, o ponto em que um desejo de conhecimento atinge a máxima intensidade e se torna uma vida, nunca uma meta.
Se se começa a ler pelo “Telegrama a Fernando Brant”, pode-se também, de pronto, rever as circunstâncias da re-exposição de um mundo: o violão que aprende duas ou quinze canções de rua, do Clube da Esquina, movimento de músicos em Belo Horizonte que desde os anos 1970 remove corações suspeitos diante de uma única ideia, mas nunca fixa, a de que é preciso inventar tudo: “Varrem um país aborrecido / com o silêncio dos digeridos. / Mas os amigos passam bem, / venceram todos os imprevistos. // Um milagre, dizem. Um espelho / na contracapa de todos os discos.” Antes, em “Estudo para um outro mundo”, anota: “No interior / do filme / sobre a história / da câmera / uma fonte de água / filmada como se / estivesse / mísera. Mera / alusão à memória. / Mero início, sugestão / de um outro mundo, / liso e férreo, gélido, / sem órbita, / com sua heráldica, / sua balística / e sua crise hídrica.” Ou em “Cão vida”: “-‘Estou cansado’, pensei, / […] // -‘Como assim cansado? / você ainda deve morrer: / […].” Os poemas de Ricardo Rizzo têm uma reviravolta de força e esperança, estes engendramentos, contra a miséria que geramos e, assim, a cada estudo, vem um debate de corpos entre prognose e profecia, entre o que existe e o que não existe ainda, mais ou menos como aquilo que Pasolini chamara de “ficção criadora do vivido” ou, numa pergunta: “não é pela felicidade que se tenta mudar o mundo?”.
MANOEL RICARDO DE LIMA é professor da Escola de Letras e do PPGMS, UNIRIO. Publicou, entre outros, Geografia Aérea (7Letras, 2014), Jogo de Varetas (7Letras, 2012), As mãos (7Letras, 2003), A forma-formante – ensaios com Joaquim Cardozo (EdUFSC, 2014) e Maria quer o mundo (Edições SM).