Uma Suprema Corte acovardada

Uma Suprema Corte acovardada

(Foto: Nelson Jr./SCO/STF)

Diferentemente do STF de 1964, que foi vítima de violências institucionais e sofreu forte intervenção do Executivo para se render, a atual composição da Suprema Corte subjugou-se voluntariamente para se tornar sócia menor do golpe em curso

“Nós temos uma Suprema Corte totalmente acovardada”, afirmou, em março de 2016, o ex-presidente Lula para a então presidenta Dilma Rousseff em uma conversa particular que foi ilegalmente “vazada” para a imprensa.

Apesar de ter sido dita em uma conversa telefônica privada, envolvendo a autoridade máxima do país e com violação flagrante de sua prerrogativa de foro, sem mencionar o absurdo da divulgação da gravação, essa frase, que parecia um tanto exagerada, era a mais pura verdade.

A decisão desta semana do Supremo Tribunal Federal que manteve Renan Calheiros como presidente do Senado, mas sem figurar na linha de sucessão presidencial, criando uma estranha situação decorrente do amplo acordo feito para, supostamente, evitar maior desgaste institucional. Isso porque Renan decidiu descumprir, com respaldo de seus pares no Senado, uma ordem judicial monocrática concedida liminarmente pelo Ministro Marco Aurélio Melo para o afastamento daquele. Não há dúvida de que, neste caso, o Supremo se acovardou.

Já em 1964, quando um golpe civil-militar tomou de assalto o poder, o STF não se curvou ao arbítrio de imediato, como vem ocorrendo após o golpe de Estado de 2016, apesar de não vivermos, no atual momento, uma ditadura como aquela instalada pelos militares.

Naquele momento, diversas intervenções no Judiciário foram minando sua autonomia. Por meio do Ato Institucional n. 2, de 27 de outubro de 1965, a ditadura ampliou de 11 para 16 o número de ministros do STF, com claro intuito de ter uma maioria na composição da Corte.

Mas isso não bastou. Os civis acusados de cometer crimes “contra a segurança nacional” passaram a ser julgados na Justiça Militar, e não mais pela Justiça Comum.

Com o objetivo de neutralizar – quando não suprimir – os outros poderes e concentrar cada vez mais prerrogativas nas mãos do Executivo, a ditadura esvaziou progressivamente as atribuições do Judiciário. Sucessivos atos institucionais, que foram o formato predileto assumido pelo arcabouço da legalidade autoritária do regime, cassaram sistematicamente liberdades e direitos fundamentais. O último artigo desses atos institucionais  sempre consignava que estariam “excluídos de apreciação judicial os atos praticados com fundamento no presente Ato institucional e nos atos complementares dele”.

Ou seja, o Judiciário perdia competências e poderes a cada ato institucional, até chegar no famigerado AI-5, quando o pouco que restava de autonomia do sistema de justiça foi definitivamente suprimido, inclusive a concessão de habeas corpus fora suspensa a partir de então.

Além disso, ministros considerados “subversivos” foram cassados por meio de aposentadoria compulsória, como Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva, conforme decisão do Conselho Nacional de Segurança de 16 de janeiro de 1969 . Outros dois ministros, o então presidente da Corte, Gonçalves de Oliveira, e aquele que seria seu sucessor, Antônio Carlos Lafayette de Andrada, saíram em solidariedade aos colegas cassados. Soma-se a isso, em 1971, quando o STF julgou constitucional a lei da censura prévia (Decreto-lei nº 1.077), editada pelo Governo Médici, o ministro Adaucto Lúcio Cardoso foi voto vencido, despiu sua capa e abandonou, indignado, teatralmente o STF, sendo também aposentado compulsoriamente.

Ainda em 1969, por meio do Ato Institucional n. 6, a composição do STF voltou a contar com 11 membros, mas agora já com maioria de ministros indicados pela ditadura e sem muito poder de questionamento do regime. Assim a Corte manteve-se domesticada e esse foi um legado da ditadura para a democracia.

Agora, ao contrário dessa intervenção direta, o atual STF cumpriu um papel vergonhoso de legalização do golpe ocorrido em 2016. Basta lembrar que a mesma Corte que agora deixa Renan, réu em ação penal, na presidência do Senado não permitiu a nomeação de Lula, apenas investigado, para ministro do governo Dilma. Assim, ao invés de controlar a legalidade material do procedimento de impeachment, a Corte preferiu lavar as mãos e vem se prestando ao papel de chancelar medidas de retirada de direitos e de retrocessos sociais, conforme já pudemos analisar em texto anterior dessa mesma coluna.

A decisão dessa semana desmoraliza o STF e desencadeia uma crise institucional sem precedentes. O descumprimento de uma ordem judicial, seguido de um grande acordo materializado em uma gambiarra jurídica para não impedir o calendário de cassação de direitos programado pelo governo Temer, é um acinte à democracia. Ainda mais com a sinalização de retirada da urgência da discussão do projeto de lei contra abuso de autoridade que afetaria os magistrados.

Diferentemente do STF de 1964, que foi vítima de violências institucionais e sofreu forte intervenção do Executivo para se render, a atual composição da Suprema Corte, em pleno gozo de sua autonomia, subjugou-se voluntariamente para se tornar sócia menor do golpe em curso. Não se trata mais de uma rendição à força, mas de uma vergonhosa submissão que nos causa saudades do STF de 1964.

Depois desse episódio grotesco, podemos afirmar, sem nenhum receio, que temos uma Suprema Corte acovardada. Não podemos dizer que não sabíamos, pois “Luís Inácio falou, Luís Inácio avisou”. E ele estava certo.

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