Uma realidade placebo, para uma solução placebo

Uma realidade placebo, para uma solução placebo

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de dezembro de 2021 é “angústia”


Terapias holísticas, psicanálise evangélica, propostas mil de curas fáceis etc.; até uma autorização do MEC para um curso de graduação em psicanálise. Quase em sua totalidade, tais práticas perseguem o rastro da angústia – alimentam-se dela; mas de um modo diverso do proposto pela edição 276 da Cult: No rastro da angústia. A fome do capital, que torna tudo comestível, tenta trazer para si os âmbitos que ainda estão fora das rédeas (uma graduação seria formalizar a psicanálise dentro de padrões – primeiro passo para regulamentação?).

Considerando-se o aumento expressivo relatos/ casos daquilo que pode ser chamado de angústia (ou qualquer vivência singular de conflito individual, nomeado ou não), por que vigoram, em nossa realidade, teorias e práticas de cuidado (ou cura) e autoconhecimento que têm pouca fundamentação além da própria crença? Uma prática apenas vigora se o contexto der solo a ela; cada tempo deve permitir uma concepção de realidade para que as práticas funcionem. Este mesmo contexto é constituído e sustentado por uma sociedade.

O ser humano bem que gostaria de encontrar as práticas que vencessem a dureza do mundo, desde o macrocosmo até seu microambiente. Mas, todo problema pode ser vencido? O ser humano parece estar em um jogo infantil, acreditando que nosso existir – que é ínfimo, diante do todo – poderia subverter o real, como se a natureza pudesse se sujeitar “inteiramente ao ser humano. Existem os elementos, que parecem zombar de toda tentativa de coação humana”, como escreveu Freud em O futuro de uma ilusão. Há situações para as quais não há cura – ou, pelo menos, nossa racionalidade ainda não consegue indicar onde ela se dá.

Os modos assumidos pelo ser humano para resolver problemas nem sempre os resolvem; ele transforma o mundo (elimina e exclui), mas nem sempre evolui com o que transforma e, ao invés de se desenvolver, ele subsiste. E subsistir não é equivalente a existir genuinamente.

Tudo que subsiste na realidade humana depende de um contexto político, enquanto conjunto de estruturas de organização que têm por base um entendimento de mundo aceito por um grupo social. Apenas assim, é possível entender de que modo algumas práticas se fazem presentes. Ao longo do tempo, práticas como vidência, bruxaria e feitiçaria foram “aceitas”; atualmente, pode haver quem acredite nelas, mas são práticas infinitamente mais fracas. Desde a Idade Moderna, vem se desenvolvendo a ciência segundo o modelo que conhecemos, também como prática que busca conhecer e vencer a natureza. “O espírito científico gera uma maneira específica de nos colocarmos diante das coisas deste mundo”, ainda nas palavras de Freud. Na atualidade, há as práticas ditas holísticas, os cursos de psicanálise selvagem etc. Não igualo estas práticas, seja ao pensar efetividade, eficácia, verdade ou importância; elas apenas foram citadas juntas como práticas que se propõem como caminhos de solução.

Qual contexto sustenta as diferentes práticas que conhecemos? O nosso. As mais diferentes propostas, com as mais diferentes fundamentações, fazem-se presentes porque há aberto um espaço dentro do qual pouco se exige de fundamentação. Cada tempo produz seu louco (leia-se: A história da loucura, de M. Foucault); cada tempo medicaliza ou exclui (veja-se o alto índice de medicalização da sociedade, desde a infância. Cada tempo tem suas práticas de cura e solução – ortodoxas ou não. Para uma cura, é preciso um diagnóstico que, por sua vez, é uma interpretação que se dá de modo contextual.

Questões mentais viram objeto-alvo da fúria do mercado que avança sobre o que puder. A psicanálise, não sendo regulamentada se torna porta fácil, já que todos querem fazer o bem. Mas, qual bem? A quem? A que custo? Com tanta gente angustiada, é preciso uma prática que solucione – mas é preciso uma teoria para um mundo no qual tal prática funcione. Se uma prática parecer “estranha” (amenizemos assim), seus praticantes afirmam que a realidade é que está errada, devendo se adequar à teoria e aceitar o que se oferece como cura. Um contexto permite um diagnóstico e a respectiva cura – ainda que esta última seja apenas ilusão: “(…) chamamos uma crença de ilusão quando em sua motivação prevalece a realização de desejo, e nisso não consideramos seus laços com a realidade”, segundo Freud.

Todas as práticas da atualidade curam? Pode ser que sim, mas, para isso, algumas têm de forjar um mundo placebo para uma cura placebo poder ser vendida.

 

Luís Fernando Crespo é doutor em Filosofia (PUC-SP),  professor
na Universidade São Francisco (USF) e integrante da Casa Fluxo –
Psicanálise e Contemporaneidade.

 

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