Um visconde partido em muitos

Um visconde partido em muitos

Em Assunto encerrado – discursos sobre literatura e sociedade, Italo Calvino sinaliza as mudanças de seu percurso intelectual

Tony Monti

“No coração não guardava nem nostalgia, nem dúvida, nem apreensão. Para ele as coisas ainda eram inteiras e indiscutíveis, e assim era ele próprio.” É apenas no capítulo seguinte, o segundo, que o visconde é partido ao meio, como anuncia o título do romance de Italo Calvino. Essa passagem analítica, em que um homem inteiro se divide em duas metades, é imagem exemplar para as mudanças no percurso intelectual do autor em Assunto encerrado – discursos sobre literatura e sociedade, coletânea de ensaios que Calvino escreveu entre 1955 e 1980.

Uma entre muitas possibilidades, os ensaios podem ser lidos, na sequência, como o desdobramento de uma poética para a obra ficcional do autor. Dos mais antigos aos mais recentes, os textos se sucedem como se pouco a pouco um visconde fosse se dividindo, transformando-se em uma estrutura complexa. No início, Calvino é mais assertivo, os diagnósticos negativos para a situação histórica são seguidos de respostas simples sobre como agir na situação (de certo modo, em acordo com o espírito revolucionário, proposto por Gramsci, “pessimismo da inteligência, otimismo da vontade”). Esse período corresponde, na ficção, à publicação da trilogia que inclui O visconde partido ao meio, com a qual se afasta do neorrealismo italiano. Segundo ele, a realidade histórica então presente não oferecia, se transfigurada em literatura, o potencial para ação que ele queria em seus enredos. Como alternativa, foi buscar essa possibilidade em universos fabulosos ambientados em um passado distante.

Mas a distância no tempo não significou esquivar-se da política e dos valores do mundo presente. A discussão moral, bastante evidente nos romances e ensaios dessa fase – um dos viscondes resultantes era sempre mau, o outro sempre bom –, é parte das propostas para vincular a literatura e a sociedade. No plano da forma, além de expandir as fronteiras da linguagem (e do pensamento), para Calvino a literatura impõe, com as escolhas que organizam o texto, modelos de linguagem (modos de pensar) que são ao mesmo tempo estéticos e éticos.

Formular a complexidade

Em 1957, Calvino se desliga do Partido Comunista. Em ensaios pouco posteriores a essa data, ele declara que a complexidade do mundo esfumaça as fronteiras entre pares de opostos  (bem e mal, masculino e feminino, afirmar e negar). É nessa época que ele se aproxima do Oulipo (Ouvroir de littérature potentielle) e da matemática e publica histórias, como Se um viajante numa noite de inverno, em que os enredos se dividem em múltiplos fragmentos, por permutações que obedecem a modelos lógicos mais elaborados que aquele que bipartiu o visconde. A proposta era construir uma racionalidade, na literatura, que fosse mais adequada ao mundo complexo. Com a intenção de explorar frações obscuras do homem, da natureza e da cultura, o esforço do autor no texto seria produzir mapas detalhados como formulação de complexidade e de desordem.

Em um dos últimos ensaios do livro, Calvino diz que “conseguir definir as próprias dúvidas é muito mais concreto do que qualquer afirmação peremptória, cujos alicerces se baseiam no vazio, na repetição de palavras cujo significado se desgastou pelo uso excessivo”. Em muitos pontos, devido à falta das certezas, o potencial da ação deixa de ser o confronto de exércitos em um campo de batalha e passa a ser a exposição organizada das dúvidas em fragmentos (como eram as duas metades do visconde) que se contrapõem e dialogam, sem que se decida por um e se descarte os demais. Assim, a forma da expressão (relacionada, entre outros aspectos, à geometria que estrutura as partes do texto) torna-se central para definir as tensões nos enredos.

Calvino define esse modo literário de colocar-se em ação como a vontade de encontrar uma saída em um labirinto, ainda que sair não signifique esgotar o jogo, mas entrar no labirinto posterior. O caminho tortuoso, no labirinto, corresponde ao traçado preciso de uma fronteira no mapa que o texto pretende ser. Como esforço racional, Calvino tenta manter o foco em decifrar, mas admite que a vontade de decifrar se confunde às vezes com o gosto por perder-se.

Assunto encerrado – discursos sobre literatura e sociedade
Italo Calvino
Trad.: Roberta Barni
Companhia das Letras
384 págs.
R$ 49,50

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