Um Tocantins todo meu

Um Tocantins todo meu

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de julho de 2021 é “memória”


Tudo era poesia no meu norte. Os arbustos avançando entre uma vegetação rasteira, minhas canelas cinzas de tanto brincar, um sol que brilhava cada segundo mais forte, mas a pele não queimava mais. Como dizia o seu Cipriano, velho de toda a sabedoria da rua: “Esses meninos são que nem cutia, parecem animais, sempre atrás de alguma invenção”, e saía rindo, mascando o seu fumo, com suas chinelas descascadas, o cabelo cada vez mais branco, segurando uma sacola de pão na segunda, carregando um carrinho de mão cheio de alfaces da hortinha pra vender na feira no domingo. A vida era assim. Sempre era verão no meu Norte.

Mas antes do verão de fato chegar, tinha aquela outra época do ano: a da ventança. As mães empurravam os mundaréis de poeira que adentravam em suas casas, que subia nos móveis, e se escondia até mesmo nas panelas, ficavam doidas, proferiam palavrões. Os maridos sentiam certa crocância na comida e não reclamavam, agradeciam que naquele novo solo, de fome não morreriam.

Mas esse tempo não era dos desbravadores maiores, mas sim dos mirins. Dezenas de crianças olhavam o céu com fascínio: o céu no cerrado em tempo de ventaça é coisa colorida em mil tons. Verde, amarelo, vermelho, rosa, azul. Mil tons de pipa, ou de papagaios se você preferir. Quem voava mais alto, quem derrubava mais baixo. Essa era a metáfora da vida ainda não compreendida por todos aqueles moleques de pés rachados de correr descalço num solo tão vermelho, de joelhos lascados de tanto cair, de dentes de leite jogados em cima dos telhados pra dar prosperidade, e de sumiços de dia inteiro da instituição superior, a Mãe.

Toda a organização daquele novo mundo era comandado pelo matriarcado, e não era vergonha nenhuma admitir isso. Toda tardinha, quando o pôr do sol mais bonito já visto beirava o horizonte, as cadeiras de macarrão iam sendo postas, uma a uma, na frente das pequenas novas construções daquelas que abandonaram suas raízes, pra criar novas aqui. As risadas ecoavam alto numa rua ainda sem energia, exceto a vital. E, enquanto aquelas mulheres tentavam desvendar com olhos míudos os filhos que brincavam de pique-esconde na escuridão, suas bocas encontravam o nome de todas pessoas vivas e mortas daquela vila:

_Você viu a filha da Augusta? Nem parece aquela pinguela que apareceu aqui só a remela e bucho dágua _ dizia uma. “

_Se não cuidar, pega outro tipo de bucho_ dizia outra.

Risadas de todas, menos da Augusta.

_E o filho da dos Anjos, parece que vai virar padre mesmo né?!_ um sinal da cruz ali e outro aqui.

_Vocês souberam do Cláudio, filho da Marineide, parece que não volta mais_ silêncio e algumas lágrimas.

Uma fila de homens avançando a esquina, assim como a noite mais pesada. Cadeiras retiradas uma a uma. As roupas ainda encharcadas de suor e lama. Trabalhadores braçais na maioria, vindos de outra vegetação para se tornarem arbustos também: encurvados, mas sobreviventes.

De dia novamente, o cotidiano se repetia. O berreiro das crianças mais novas, o riso estridente das maiorzinhas, os gritos graves das mães preocupadas, o latido dos cachorros, os jingles das músicas nos carros de som que tudo vendiam e latinhas e alumínio compravam, o campinho cheio de meninos jogando bola, olhando o céu, sonhando.

Quando o primeiro poste apareceu foi um alvoroço, a luz alaranjada borrando uma rua inteira até o pé de manga onde as araras sempre vociferavam ao amanhecer. Os esconderijos do pique-esconde se tornaram mais complexos, as conversas nas ruas menos íntima pois todas as mulheres podiam ler no rosto das outras o tom de joça e de desprezo, se houvesse. A retirada das cadeiras, no entanto, agora tardava mais: nos serviços dos maridos também tinha chegado a energia elétrica. As pipas agora tinham locais certos pra voar.

A água que antes corria no córrego, começou a chegar em torneiras e as demoradas horas de lavagem de roupa suja, em todos os termos, ficaram pra trás. Assim como os ombros cansados de carregar baldes, e as viroses das crianças. Com água limpa, chegou também pessoas limpas, bem vestidas, que diziam que aquele lugar eram delas.

_Mas como, se nunca os vimos aqui? _ Reclamava Dona Augusta.

_Querem que a gente lhes dê dinheiro pelo nosso chão!_ Berrava Das Dores.

E era assim que agora viam aquele lugar, o seu chão. Um chão áspero e exageradamente vermelho, mas ainda assim seu de fato. Dobraram as mangas das camisas e gritaram a plenos pulmões que não importava se aquela era área de ricos, não sairiam dali, tinham construído aquele lugar. E assim como arbustos, permaneceram.

As pipas na época ventança ainda colorem os céus.

A filha da Augusta realmente teve filhos, mas casou-se bem, começou-se a sentar junto com as demais, na sua própria cadeira de macarrão, na porta da sua casa. O filho da Dos Anjos não virou padre, mas sim jogador de futebol, às vezes aparece na televisão e a criançada faz a festa quando ele visita a Vila União, correm atrás dele eufóricas, e ele responde com seus passos majestosos ainda naquele velho campinho. Seu Cipriano continua envelhecendo, mascando seu fumo, arrancando dentes crianças, carregando alfaces e comparando todo ser humano a um bicho diferente. Cláudio, filho da Marinelde realmente nunca mais voltou.

 

Raynara Melo, 24 anos, nascida e criada
na cidade de Palmas, capital do Tocantins.
Viu a cidade crescer de uma das suas
comunidades mais antigas e marginalizadas:
a vila União. Viveu também a transformação
e a criação da identidade cultural de um povo
mesclado de muitas influências. Estuda na
Universidade Federal do Tocantins

 

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