Um espelho do tempo
por Marcia Tiburi
Tata Amaral criou e dirigiu um filme essencial para o Brasil de todos os tempos. Trago comigo dirige-se a todos nós, a quem, no tempo presente, é capaz de conectar-se ao passado e aos que não tem conseguido se preocupar com uma atitude mental como essa, aquela que envolve o pensamento e a sensibilidade que se abrem ao desconhecido, ao outro e sua experiência dolorosa. Se nosso passado pesa sobre nós, é como tempo da colonização e da escravização dos habitantes marcados como objetos de um processo econômico que só persiste pelo aviltamento e a humilhação das pessoas que devem suportar o sistema, mas também como o passado mais próximo que agora vem bater à nossa porta na forma de um morto que pede um enterro impossível. A ditadura militar com toda a maldade e indignidade que produziu é o pano de fundo onde se esconde esse morto que não podemos enterrar, ainda que só se possa viver ao fingir que não o vimos. O trauma em torno do qual se constrói Trago Comigo tem relação com o gesto humano que nos leva a continuar a viver apesar da morte injusta e violenta dos outros a quem um dia amamos ou fomos fiéis.
O conflito geracional exposto no filme resulta de uma tensão. Os jovens atores chamados para representar na peça de Telmo, personagem central do filme, não conseguem conectar-se ao sentimento revolucionário de seu diretor. Telmo não é um didata, ele não é apenas um professor, como os garotos o chamam. Como Hamlet, ele espera, por meio da peça, lembrar o que se passou em sua própria vida em relação a uma pessoa a quem amou profundamente e a quem esqueceu. De um lado, a peça serve como caminho da consciência. De um lado é a sua própria consciência que está implicada. De outro, ele espera, como Hamlet, capturar outra consciência, a de um amigo que ele vê como culpado pelo fato apagado de sua memória. A morte de Ana, capturada no contexto da prisão e da tortura é esse fato que, de tão insuportável, desce para os confins infernais do esquecimento. Por fim, é também a nossa consciência de espectadores que o filme procura capturar.
Telmo é o diretor de teatro que, entre melancolia e nostalgia, deixou para trás o sentido da própria profissão. Ele passa a dirigir essa peça criada com os próprios atores em um procedimento muito sofisticado de sensibilização. Os jovens entregam-se ao processo, mas vivem em seu tempo, com questões que também não são comuns para o diretor, o que dificulta as relações entre eles. Não é possível não mencionar a atuação realmente impressionante de Carlos Alberto Ricelli. A atuação é uma arte de transmissão, mas é, mais ainda, a arte da presença na qual o ator se apaga para fazer nascer a vida do personagem. Somos tocados por esse personagem que nos vem mostrar por meio de palavras cuidadosas e de muito silêncio, que a vida não tem explicação, mas que nossos encontros podem resgatar alguma coisa que ainda importa entre nós.
Separados uns dos outros no tempo, somos impedidos de compreender e impedidos de avançar. Assim algumas pessoas não conseguem acreditar na tortura, não podem suportar essa verdade histórica. A ficção, no entanto, como potência criativa das pessoas, permitirá o acesso ao tempo e à experiência que se perdeu. É assim que podemos assistir Trago comigo e trazer de volta a substância do tempo que nos faz pensar.
Assistindo ao filme, pensei muito no sentimento que aquelas pessoas, durante os anos sessenta sob a perseguição, na clandestinidade, tinham do futuro. Hoje, quando as condições da expressão política, crítica e lúcida, parecem tão abaladas, os tempos se aproximam. Eu penso em nós e no que temos pela frente, nas sombras, nos silêncios, nas mortes, nas dores e na esperança que pode nascer de algum lugar oculto nesse momento.
Trago comigo, na expressão sensível do personagem Telmo e de seus jovens aprendizes da arte de viver, ensina-nos muitas coisas. Uma delas é a olhar para trás para poder ver o que somos hoje. Não é um clichê que o passado ilumina o futuro, nem que o futuro depende do que o passado nos lega. No meio disso, o mistério do presente.
Trago comigo é um espelho do tempo capaz de nos mostrar a face oculta do que vivemos hoje. Alienados de nosso próprio tempo presente esperamos que algo venha traduzir o que vivemos agora. Trago comigo é esse gesto generoso no amplo processo da história ao qual estamos condenados.