Trilhas de uma vida

Trilhas de uma vida

por Marília Kodic

Este pode ser o último documentário de Eduardo Coutinho tais quais os conhecemos: “Nunca mais vou fazer filmes em que pergunto às pessoas sobre suas vidas, desisti. Já fiz muitos, tenho de inventar outra forma de fazer filme”, diz, por telefone, à CULT.

No filme As Canções, que estreia neste mês nos cinemas, o diretor pergunta a 18 pessoas – selecionadas nas ruas cariocas, pela internet e por anúncios de jornal – que música marcou suas vidas e por quê, e pede que as cante. “Era muito fácil eu querer colocar uma canção do Caetano, do Chico, mas a música não entrou porque é bonita ou feia, e sim em função da ligação com a lembrança”, diz.

Para ele, a música tem poder cicatrizante: “As pessoas saíram melhores da filmagem. A música é como análise, cura ferida”. Quanto à mais pedida, Coutinho brinca: “Aí era batata, inevitável: Roberto Carlos. Eu podia fazer o filme só com ele, fácil, fácil”. Uma surpresa: “Não teve Raul Seixas, o filósofo do povo”.

CULT – Qual canção marcou o senhor e por quê?

Eduardo Coutinho Se você fosse fazer uma pesquisa na rua comigo, como eu fiz com os outros, iria dizer “nenhuma”.

E como surgiu a ideia desse documentário?

Justamente porque eu sei que para os outros não é assim. Quis descobrir por que e como foi diferente.

Como explica a predominância de pessoas mais experientes no corte final?

Na minha opinião, o jovem não lembra nada. Ele vive. E as pessoas do filme contam histórias de amor de 40 anos atrás. Então, não foi por influência minha, que sou velho, que a música mais recente do filme é do Jorge Ben.

Por curiosidade, inclusive, nenhuma das 240 pessoas cantou uma música estrangeira. Foi absolutamente surpreendente. No universo jovem, não deve acontecer isso. Deve ter gente que não sabe uma brasileira e capaz de cantar muitos rocks ou músicas pop.

A única estrangeira que tem, não por acaso, é um bolero de 1939 chamado “Perfídia” (do mexicano Alberto Domínguez), que foi gravado por Francisco Alves e por vários cantores da época e que era traduzido e cantado como música brasileira, então ninguém sabe que é estrangeira. No filme, é cantado por duas pessoas. É uma música do meu tempo e que fez parte da minha vida. Tinha até o disco dessa música, na época, então “Perfídia” faz parte de minha memória afetiva, do que eu vivia. Eu me lembro do disco, que era azul, de 78 rotações.

Então houve um critério de seleção pessoal também?

Não, eu não escolhi nenhuma música. Era muito fácil eu querer colocar uma música do Caetano, do Chico, mas não, não fiz isso. A música não entrou porque é mais bonita ou mais feia, mas em função da ligação com a lembrança, saber contar e cantar.

Segunda regra, a maioria das pessoas é puramente amadora, gente que no máximo cantou no karaokê – tirando uma, que é a primeira personagem. Ela é profissional, mas tem 83 anos e não conhece ninguém no Brasil; ela foi morar em Portugal e passou anos lá.

Eu procurei eliminar todo mundo que tinha uma carreira. E se a pessoa não sabia a letra, caia fora. E havia gente que cantava tão mal que não dava. Tinha que ter o mínimo de afinação, minha regra era essa, que não fosse desagradável de ouvir. As pessoas deviam entoar a canção bem, com emoção, exprimir o sentimento com um mínimo de melodia e ritmo. Se elas cantavam bem demais, ou mal demais, não entravam.

Mas alguma história muito boa ficou de fora por causa disso?

Teve uma pessoa com uma história maravilhosa, mas que eu tive que tirar por questões éticas. Envolvia vinganças terríveis, crime, e lamento, mas não pude mostrar. Lamento muito porque a história era fantástica.

Tem histórias ótimas e poderosas que quase entraram, mas o filme tem uma estrutura, uma duração, e não pude colocar. Mas vão entrar nos extras quando sair o DVD. Queria ter mais histórias em que o amor entre homem e mulher não fosse o principal, que fosse a avó, o avô, o pai.

Grande parte dos depoimentos tem um tom mais dramático, alguns entrevistados choram… Por que escolheu essa abordagem mais emotiva?

Um deles cantou uma música que a mãe costureira cantava, que ele nem sabia o nome da canção e nunca tinha ouvido no rádio. E, de repente, ninguém sabe por que – porque filmagem é isso –, naquele momento, ele simplesmente começou a chorar. E homem não chora, você sabe, né? E eu acho isso absolutamente extraordinário. Ele mesmo diz ali: “Não sei por que chorei, minha mãe está viva, com 85 anos”.

A música faz isso. De repente o cara chora lembrando de um acontecimento alegre. E ele mesmo ficou puto porque chorou. Eu adoro esse depoimento. Ele é o único do filme que chora de fato, os outros ensaiam choro.

Acontece o seguinte, as mulheres simplesmente contam como elas foram “corneadas”, e o homem não conta. Uma mulher lembra do namorado, marido, dos 40 anos de história, e diz: “foi o homem da minha vida, até hoje é, e eu nunca fui a mulher da vida dele”. Nenhum homem fala isso. Dificilmente vai dizer. No Brasil o homem é machista ainda. Vai demorar cem anos pra mudar.

Acredita que a música tem poder cicatrizante?

Em todas as entrevistas, eu sabia que as pessoas iam sair da filmagem melhores. A música cura ferida. Como a análise. Acho que elas têm uma história que valeu a pena ser contada e que, em certa medida, superaram. Pelo fato de cantarem, você supera essa dor, cicatriza. Música é pra isso.

Eu não estou preocupado em saber se isso tudo é verdade. Se me contam bem, é verdade.

Dentre todos os depoimentos, quais foram a música e o artista mais citados?

Aí era batata, inevitável. Roberto Carlos. Eu podia fazer o filme só com Roberto Carlos, fácil, fácil. E a surpresa que eu tive é que não teve Raul Seixas, o filósofo do povo. E, curiosamente, o segundo lugar foi Legião Urbana, que fiquei besta: “Pais e Filhos”. Mas não coube por motivos dramatúrgicos, e tem o problema que a música tem três minutos. E nenhuma das músicas foi cortada, foram cantadas integralmente. E cortar esta música é fogo, né?

Está trabalhando em algo novo?

Não sei. Se você me perguntar o que eu vou fazer ano que vem, não sei se vou estar vivo, se tenho coragem de fazer outro filme, se consigo fazer outro filme. Nunca mais vou fazer filmes em que pergunto às pessoas sobre suas vidas, desisti. Já fiz muitos, tenho que inventar outra forma de fazer filme. Só digo que não pode ser caro.

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