Tolstói ou Dostoiévski?

Tolstói ou Dostoiévski?

Fátima Bianchi

Como se costuma dizer na Rússia, quem se sente mais próximo de Tolstói, acha Dostoiévski estranho, e quem tem maior inclinação por Dostoiévski, é indiferente a Tolstói. O fato é que os dois continuam sendo os escritores russos mais conhecidos, lidos e estudados no mundo todo.

Em geral, para o leitor, mais próximo é o escritor cuja obra está mais em consonância com os seus sentimentos, pensamentos e pontos de vista. Eu gosto dos dois, pela maneira como, cada um a seu modo, apresentam em suas obras os destinos humanos. Mas me sinto mais em sintonia com Dostoiévski, que em sua obra literária, ao colocar os problemas, como observou Lukács, absteve-se de apontar soluções.

De Tolstói, tenho uma preferência especial por Anna Kariênina, o primeiro romance de literatura estrangeira que li, ainda na adolescência, e que até hoje me surpreende com suas ressonâncias para cada um de nós, apesar de a experiência histórica do autor encontrar-se tão distante da nossa.

No entanto, pode até ser considerado masoquismo, mas entre sofrer pela personagem e padecer junto com ela, fico com o segundo. Em Anna Kariênina, o leitor sofre pelo destino da heroína, mas em Crime e Castigo ele padece junto com Raskólnikov, como se participasse da ação. Por isso o meu romance predileto de Dostoiévski é Crime e Castigo.

Para Dostoiévski, a literatura, assim como a arte em geral, tem uma missão social elevada a cumprir, e um escritor verdadeiramente grande é como um profeta, enviado ao mundo para anunciar o mistério do homem, o mistério da alma humana.

Ou seja, ele é um mestre da sociedade, porque uma obra literária verdadeira, autêntica, só pode ser criada com um “dedo apaixonadamente em riste”.

Ao escrever Crime e Castigo, sua intenção era tentar minimizar as consequências que, na sua opinião, as doutrinas morais e sociais do niilismo russo poderiam acarretar para a nova geração de intelectuais progressistas dos anos de 1860.

E, se Dostoiévski faz com que o leitor passe, junto com Raskólnikov, todo o seu calvário de buscas, dúvidas, desilusões e esperanças, é porque para ele a obra literária só cumpre o seu papel quando a verdade que ela expressa é incorporada pelo leitor – que sai da experiência que viveu ao lado do herói convencido da verdade que a obra encerra.

E, para chegar a esse objetivo, Dostoiévski conseguiu uma coincidência quase completa do lugar no tempo do leitor e do personagem. Só quem leu esse romance sabe o que sofreu e padeceu, junto com Raskólnikov, o presente que avança, o presente em movimento. Não é que o leitor simplesmente co-participa da ação. Ele, literalmente, também carrega o peso da via crucis, do calvário, de Raskólnikov desde a teoria até o crime e depois através de todos os padecimentos dele até o arrependimento. O leitor não sofre por ele, mas com ele. Isso é genial.

Quais os escritores que derivaram de cada um?

Com Recordações da Casa dos Mortos, Dostoiévski, ao abrir para o leitor as portas da prisão nos trabalhos forçados, criou um novo gênero literário, que teve grande reflexo na literatura posterior, desde Tchékhov, com a Ilha de Sacalina, até Aleksandr Soljenítsin, com o Arquipélago Gulag.

Outra grande realização sua foi a criação, com o conto “O Sonho de um Homem Ridículo”, de uma obra a apresentar a idéia de distopia, que viria a ter um reflexo evidente no romance Nós, de Zamiátkin, assim como nos que viriam depois dele, como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, e 1984, de George Orwell.

No Super-Homem, de Nietzsche, é evidente a presença de Crime e Castigo (veja-se, nesse sentido, o artigo de Raskólnikov). Ao mesmo tempo, como já se disse mais de uma vez, a literatura do existencialismo francês, sem Dostoiévski, seria simplesmente impensável.

A presença de Dostoiévski é marcante em toda a literatura ocidental, ao antecipar recursos que a narrativa moderna, no século XX, iria banalizar.

Para Otto Maria Carpeaux, “sua obra constitui o marco entre dois séculos de literatura. Literariamente, tudo o que é pré-dostoievskiano é pré-histórico; ninguém escapa à sua influência subjugadora, nem sequer os mais contrários”.

Também Lukács afirma que “ele pertence ao novo mundo” e coloca a questão se não seria Dostoiévski “o Homero ou Dante desse novo mundo ou se apenas fornece as canções que artistas posteriores, juntamente com outros precursores, urdirão numa grande unidade”.

Já a presença de Tolstói é grande, por exemplo, em Ivan Búnin, que se declarava seu discípulo.

(9) Comentários

  1. Não deveria ter uma relação entre as obras de Tosltoi com as de Dostoiévcski? A Fátima se prendeu muito ao segundo e esqueceu do outro. Ela deixou que o seu amor por Dostoiévski guiasse seu texto. Como leitor queria ver a comparação que ela sugeriu no título.

  2. Concordo com o Fernando de Jesus…estava esperando o confronto a respeito dos dois escritores russos e pasmo fiquei ao perceber que a signora Fátima simplesmente nos escondeu um e apogeou o outro …minha indignação…

  3. Concordo com os que se manifestaram até agora… Mais do que uma comparação, ou mesmo um texto sobre ambos autores, Fátima acabou elaborando uma análise de Dostoiévski, mantendo Tolstoi praticamente só no título. Tanto é verdade que, na parte final, em que analisa que escritores influenciaram, faz uma vasta análise do legado deixado por Dostoiévski, enquanto reserva para Tolstoi apenas uma mísera linha…

  4. Concordo com os comentários anteriores. Nunca li nada de Tolstoi e se depender desse texto como incentivo, acho que nunca vou ler, pois só deu destaque ao Dostoiévski; mas que “Crime e Castigo” é tudo isso que foi dito e muito mais, isso é!

  5. Também compartilho da mesma opinião. Mas, não estaria a matéria em sua versão completa apenas na edição impressa da revista?
    Digo, esta matéria é justamente a capa desta edição… Seria muito estranho que o artigo terminasse assim, tão bruscamente.

  6. Estes escritores são mestres russos, que muitos tentaram mais poucos chegaram aos pés. Li e rele Crime e Castigo, Recordações da Casa dos Mortos e no momento estou lendo Memórias do Subterrâneo e já está encomentado O Idiota e tenho Irmãos Karamazóv na fila, mestres são mestres para resumir ícones russos!

  7. As escritas de Dostoiévski são intimamente guiadas pelas angústias que os homens sofrem. Parece que o autor faz uma autoanalíse (pois naquela época não havia psicólogos e ou psicanalistas) quando está escrevendo onde transcedem todas as lamentações de sua vida real. Li Sonho de um homem ridículo, pequeno conto, muito intressante. Não posso falar nada de Tolstói, pois não conheço suas obras, mas me disseram que são convidativas.

  8. É questionável a informação de que para Dostoiévski a literatura tem uma missão social elevada a cumprir.

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