Animação nacional Tito e os Pássaros reflete sobre efeitos da cultura do medo
O protagonista Tito, da animação brasileiro 'Tito e os Pássaros' (Foto: Divulgação)
Entre as obras cinematográficas exibidas neste ano no Festival Internacional de Cinema de Toronto, está a animação infantil brasileira Tito e os pássaros, dirigida por Gustavo Steinberg, Gabriel Bitar, André Catoto e com roteiro de Eduardo Benaim. A exibição do longa-metragem não só lotou a sala do Scotiabank Theatre na tarde do último sábado (8), como também suscitou, em conversa com a plateia após a exibição, o engajamento sobre o tema principal que atravessa o filme: a cultura do medo.
O filme conta a história de Tito, um garoto cujo pai, o cientista Rufus, tem se dedicado a construir uma máquina que lhe permita compreender “a língua dos pássaros”, que segundo ele desempenharam papel histórico crucial na sociedade, como nas guerras e no desenvolvimento da comunicação. Rufus sofre um acidente com a máquina colocando em risco a sua vida e a de seu filho, o que o obriga a se afastar da família. No entanto, Tito decide levar adiante a construção da máquina do pai, mesmo com seu desaparecimento.
Rosa, sua mãe, reprova totalmente a insistência de Tito em dar continuidade à invenção do pai. O garoto recorre à ajuda de amigos, Sara e Buiu, na reconstrução da máquina para apresentá-la na feira de ciências da escola. Após uma desastrosa apresentação, Tito acaba sendo proibido por sua mãe de continuar o trabalho e vê sua tentativa completamente frustrada. Enquanto isso, o mundo parece estar sendo contaminado por uma epidemia de medo, um surto que leva a sociedade ao adoecimento em um processo no qual pessoas contagiadas gradativamente se transformam em pedras.
Diante dessa catástrofe, em que as pessoas são contaminadas pelo medo e adoecem até virarem pedra, Rosa acaba se tornando também uma vítima dessa epidemia. O papel desempenhando por Rosa na trama revela, com profundidade e maestria, o modo pelo qual a cultura do medo opera em nossa sociedade. A personagem representa, de modo significativo, o indivíduo moderno em decomposição, que vai se desfazendo como sujeito, como dono de si, para se transformar em algo menos que humano, menos que um mero animal, vai se transformando, pois, em pedra.
A aventura de Tito traz, como pano de fundo, a relação da mídia com a propagação do medo nas esferas mais íntimas da vida social, que promove, de maneira cada vez mais capilar, um surto coletivo por meio do qual todos nos reconhecemos um pouco. Nos reconhecemos todos como parte de um mesmo processo gradativo de adoecimento que nos leva à paralisia diante de uma cultura do medo. O filme levanta questões importantes como a manipulação midiática sobre a população, o surgimento de figuras públicas que se tornam lideranças cujas promessas para uma possível solução acabam se tornando moeda de troca para fazer girar a economia do medo que sustenta a ordem social.
No filme, tal papel é representado pelo antagonista Alaor, empresário do ramo imobiliário e pai de um dos colegas de escola de Tito, que vende um sistema de condomínios fechados dentro dos quais a população pode viver com segurança. Alaor encarna bem a figura do político dos dias atuais que se vale do medo para se promover, ou do empresariado que explora de forma cada vez mais sutil as fissuras que rasgam o tecido social – como o pânico, o medo, “o Surto” (como traz o filme), o estado de alerta de um perigo iminente – e fazem delas o motor de sua existência.
O filme acaba traçando um certo campo de batalha presente em nossa sociedade, dividida entre aqueles que tentam resistir a todo um sistema de dominação, exploração e violências múltiplas, e os que se aproveitam das desgraças sociais em proveito próprio, ou melhor, os que produzem a doença para vender a cura. Na trama, tal campo de forças é representado pelos esforços de Tito em recuperar o projeto do pai de salvar a humanidade do “Surto”, e por Alaor em seu empreendimento imobiliário, que vende “a cura” para os males sociais, oferecendo à sociedade tudo aquilo que a modernidade prometeu: segurança e liberdade.
Apesar do embate dicotômico entre tais forças, que recupera alguns clichês narrativos como o do vilão e do mocinho, o filme não cai na fórmula simplista e empobrecedora dessa relação. Pelo contrário, a trama nos sugere que, nessa histeria coletiva em que vivemos, ninguém está a salvo, e isso se torna mais exemplificativo quando o próprio filho de Alaor acaba também sendo contaminado e se torna pedra – morre, portanto – o que o faz apostar na máquina de Tito como a possível panaceia universal.
Entretanto, o que é louvável é a forma como é explorada a relação entre o olhar da criança sobre o mundo e as próprias escolhas estéticas do filme. Tito e os Pássaros possui um visual exuberante que se expressa a partir de uma aproximação estética como o estilo expressionista, bastante evidente no filme. O olhar de Tito sobre o mundo, sobre um mundo em pedaços, no qual as pessoas estão morrendo – virando pedras -, ganha força diante das pinceladas expressionistas feitas à própria mão por Gabriel Bitar (co-diretor), o que garante uma representação densa do universo pessoal e intuitivo do protagonista, trazendo a visão trágica do mundo a partir do olhar de uma criança.
A aventura de Tito traduz, de certo modo, a angústia e a ansiedade da sociedade diante da catástrofe do mundo. O caráter existencialista do protagonista reflete bem o estilo expressionista de ser da visão interior do artista sobre uma realidade que é deformada e lida a partir de seus próprios sentimentos. Tito encarna esse artista angustiado pela tragédia que vê diante de si. A sensibilidade com a qual é feita essa combinação, do olhar trágico da criança sobre o mundo e uma atmosfera sombria inspirada na estética expressionista, é o requinte da obra.
O longa, que demorou oito anos para ser finalizado, não deixa a desejar no modo como lida com as metáforas. O filme é, na verdade, uma grande alegoria ao modo como a sociedade atual foi se afastando cada vez mais da natureza, de uma certa condição natural do ser (animal) humano, e foi se movendo em direção a um mundo composto de artefatos ilusórios que nos impede de nos reconhecer no que há de mais comum entre nós: a própria natureza. A obsessão de Rufus e Tito em compreender “a língua dos pássaros” parece ser o eixo central da obra, em torno do qual se estabelece, ainda que de modo implícito, porém não menos relevante, a clivagem entre natureza e cultura ou natureza e política. Tanto o pai quanto o filho assumem um comportamento contra-hegemônico na narrativa, pois não medem esforços para fazer esse “retorno” ao passado e entender como a linguagem dos pássaros pode salvar a humanidade da tragédia que ela mesma criou.
Os pássaros constituem a metáfora para a natureza, aquilo que nos constitui, aquilo que somos e que, no entanto, repudiamos. A fobia que Rosa tem dos pombos, por serem sujos e transmissores de doenças, sugere a clivagem entre natureza e cultura, que guia o roteiro em diversos momentos, como na cena em que Rosa, já contaminada pela epidemia do medo e adoecendo na cama, pede a Tito que não saia de casa, que se afaste dos pombos e que se proteja. Talvez esta cena seja a mais emblemática do ponto de vista narrativo, pois revela os efeitos que a cultura do medo é capaz de produzir na sociedade: pessoas doentes que se afastam da natureza, intrínseca à própria condição humana, e se tornam seres alimentados pelo medo.
A língua dos pássaros como metáfora é um dos grandes recursos narrativos do filme, pois toda a trama se norteia pela tentativa de Tito – cada vez mais frustrada, porém incessante – de compreendê-la. Em uma sociedade em que a epidemia do medo parece ser alastrada como se estivesse sendo transmitida pelas ondas eletromagnéticas dos noticiários televisivos, é preciso, talvez, entender a língua dos pássaros como um meio de transmissão de mensagem que não seja televisionada, que não seja, portanto, carregada pelas ondas eletromagnéticas que vibram na frequência do medo e do caos.
A tarefa de Tito parece ser, então, a de confrontar a lógica sobre a qual é pautado o medo, elemento sem o qual uma sociedade organizada em torno de tal projeto político dificilmente sobrevive. Tito parece ir contra a lógica da disseminação do medo como condição de possibilidade para a manutenção do status quo e de uma sociedade doentia. Seu movimento no percurso da trama revela justamente sua empreitada: nadar contra a corrente de um projeto político neoliberal que, calcado na produção do caos como o inimigo a ser combatido, pauta-se no medo como elemento aglutinador de uma sociedade doentia que vibra na mesma frequência.
É nesse sentido que se dá o esforço de Tito em compreender a língua dos pássaros não como uma língua alheia aos humanos, mas como uma língua que faz parte do que somos, que está em nós e que pode ser capaz de implodir o projeto do medo. E não se trata, todavia, de qualquer pássaro, é a língua dos pombos, renegados e rejeitados pela sociedade, que deve ser compreendida. É a língua daqueles que não têm garantido o seu lugar na história, que não têm garantida a sua voz na sociedade. São os pombos, sujos, doentios que trazem o mal, são eles que Tito e o pai procuram entender.
A profundidade alegórica do filme abre caminho para pensarmos o duelo entre natureza e cultura a partir do duelo entre a linguagem dos pássaros e uma linguagem midiática que faz a sociedade adoecer. Em tempos de fake news, em que não se pode mais distinguir o que é causa ou efeito da doença, é preciso encontrar outro modo de nos conectar uns aos outros, nem que para isso seja preciso compreender a língua dos pássaros.
Vinícius Santiago é doutorando em Relações Internacionais pela PUC-Rio