Tempo de viver

Tempo de viver
(Foto: Brett Jordan/Unsplash)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de julho de 2020 é “tempo”


Sentado no chão, encarou outra caixa com as suas velharias. Naquela, reparou, estavam seus CDs. Nostálgico — em breve, iria se mudar —, puxou-a para si. Dedo a dedo, percorria os itens devagar, lembranças do auge da baixa idade média da sua adolescência. Recordava-se de quase todos com clareza, mas chamou a sua atenção um que pensava já não ouvir há cerca de dez anos. Esforçou-se para lembrar das melodias. Falhou, frustrado. Parecia se esconder atrás da cortina de gelo seco dos anos.

Veio-lhe um murmúrio apocopado à garganta. Embora não entendesse por que, acreditou que necessitasse recobrar aquelas memórias. Sim, precisava transpassar aquele oblívio. Urgia, pois, que ouvisse o álbum outra vez. Sem outro lugar onde pudesse fazê-lo, levantou-se roboticamente, deixou o caos da sala para trás e saiu, metendo-se no carro. Ligou o rádio e, ainda nos primeiros acordes, compreendeu. Enquanto as músicas reatualizavam  sentimentos latentes de um período senão esquecido da sua vida, pouco a pouco reconstruía suas paixões perdidas.

Aí, assaltado pela nostalgia, decidiu percorrer com seu veículo a cidade natal da qual se despediria em breve. Alguém lhe havia dito que as lembranças de cheiros e melodias eram as mais persistentes, mesmo que as demais se perdessem. Concordava, agora, arrepiando-se com a crueldade do tempo para aqueles privados dos seus próprios passados pela demência. Passou pela velha escola, inalterada. No entanto, a cada loja ou casa que não via, demolidas, a cada esquina mudada, parecia constatar como irreparavelmente perdido um pedaço ínfimo, mas fundamental de si.

Nessa geografia, observava seu mapa de afetos ser corroído, carcomido pelas traças do arrastar incessante e inconsequente das horas: varanda ensolarada de casa de vó, Kafka, cachorros-quentes, a perda da inocência. Negativos de filmes fotográficos que se apagam e esquecem. Riu, descontente. Coincidência. Seu saudosismo, esse orgulho tingindo de melancolia, primeiro o descobrira há uma década, exatamente com a mesma música que, naquele momento, tocava em seu carro.

Sem muita experiência de vida, moleque àquela época, em uma contradição quase barroca, sentira-se contente e desejoso. Não entendia, contudo, pelo que: quiçá memória de um passado inespecífico, momento desimportante, vulto informe de qualquer coisa que pudesse ter sido. Pegando a avenida, virou numa curva em direção à ponte onde costumava passar o tempo com os demais rapazes. Quando novo, não havia algo ou alguém pelos quais propriamente esperar um retorno impossível, não havia pelo que ter saudade. Hoje, todavia, sabia-se saudoso exatamente dessa saudade, e saudava-a.

Dia de domingo, as ruas vazias, o tempo cinza, fechado. Pouco importava porque, no som, o tempo era aberto – destacado de si, entrecortado noutra dimensão do espaço, alternância difusa, mas ainda tempo, tempo, tempo, tempo. Uma-hora-e-pouca de duração, tempo. Corrido o último instante da música, compreendeu ter redescoberto, precisamente naquele ínterim de seu curto itinerário, a alegria efêmera da juventude. Escutar um disco todo, curtir e fazer nada, tanto tempo havia sem que matasse o tempo assim.

Aquietou-se, sorrindo. Sem pressa, subiu a serra até um mirante. Lá, as luzinhas da cidade se acenderem, apagadas em meio às árvores e morros. Demorou-se. Já tarde, entrou novamente no carro, e, pensativo, encarou a capa cyberpunk do CD sobre o banco. Uma última vez, então, fitou a vista à frente e murmurou, imitativo: all these moments will be lost in time, like tears in the rain. Retornou em silêncio. À cancela que lhe dividia o bairro, esperou que passasse um trem. Aí, passou também. Era tempo de viver.

Caio Sabadin, 23 anos, morador do sul fluminense no Rio de Janeiro, técnico em Tecnologia da Informação

 

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