Privado: Tanatografia – Michael Jackson e o duplo corpo do Rei do Pop

Privado: Tanatografia – Michael Jackson e o duplo corpo do Rei do Pop

Texto escrito por Marcia Tiburi, publicado na edição 140 da Revista CULT

A biografia de Michael Jackson, morto há três meses, é explorada em todos os meios de comunicação. No entanto, desde o funeral imaginário que se seguiu à sua morte, surge uma nova figura com a qual temos de nos ocupar. Trata-se da tanatografia, que, ao contrário da narrativa biográfica, é a antinarrativa por imagens que tem a função de manter uma espécie de vida após a morte para as deidades do nosso tempo. Ela continua fascinando um mundo que renova sua relação com o sagrado enquanto finge tê-lo extirpado.

Se a possibilidade de uma vida após a morte fascina facilmente, a tanatografia corresponde à acessibilidade peculiar do que antes era prometido pelas indulgências religiosas e hoje é acessível a todos os que, desistindo da alma, se conformam com a imagem que a vem substituir. Se no começo da história das representações ter um retrato era direito apenas dos patrícios romanos, se na era burguesa a fotografia era só para quem podia pagar, talvez num futuro próximo possamos também conquistar o direito à mais maravilhosa das formas tanatográficas surgidas até aqui, a estátua de cera. Tão atraente quanto bizarra, a estátua de cera é uma espécie de premiação para aqueles cidadãos incomuns que encarnam a fama. Se a crença em que a imagem é tudo se confirmar mais um pouco, ninguém mais precisará de um corpo. O corpo mesmo é o que de nada vale diante da imagem de um corpo. E, apesar de soar cínico, não caberá perguntar se uma “estátua de cera para todos” não será o máximo que poderemos fazer em termos de democracia?

A imagem é a morte que não morre. É sobrevida. Seres humanos aprenderam ao longo de séculos a tratar a imagem como um resto de vida que sobra de um corpo morto. As imagens técnicas são os instrumentos essenciais nesse processo de conservação da vida, mas não deixam de mostrar o caráter de espectro daquilo mesmo que rememoram. Ser fotografado, aparecer no vídeo não implica a verdade do que aparece, mas a distorção ilusória. Não é errado dizer que as imagens enganam, pois sempre se relacionam a algo que não está nelas e sem o qual elas não existem. Onde a imagem está a morte não está, podemos dizer atualizando a ideia epicurista de que a morte é o que não importa, já que chega quando não estamos. Habitamos um mundo em que a imagem não está presente senão como uma enganação sobre a presença da morte, por isso ela tem de parecer mais viva do que a própria vida. A morte é o que, estando presente, se dissimila entre nós fingindo desaparecer como um fantasma que se mostra quando menos esperamos.

Que rei é este?

O simples fato de que Michael Jackson seja representado como o “Rei do Pop” configura uma explicação emblemática do tempo antipolítico e hipereconômico em que vivemos. No passado a figura do rei não era diferente da de hoje senão por essa substituição do político pelo econômico. O capital como poder abstrato tem a forma da imagem, que não é outra que a máscara-sem-face da fama, o espectro do ego. O Rei do Pop encarnou o infantilismo que sustenta o capital. Tornou-se o nosso brinquedo, um rei de plástico, a serviço de um show do qual não foi, nem por si mesmo, nem por ninguém, poupado nem em vida nem na hora de sua morte. A diferença entre o rei do passado e o do presente é que aquele parecia ter poder, enquanto neste está explícito que o poder é que o tem. E esse poder tem o nome claro do capital.

Pensemos, pois, na morte do Rei do Pop, que se torna fundamental na interpretação de nossa vida. Michael Jackson morreu no dia 25 de junho, no dia 7 de julho aconteceu o funeral para um público de mais de 17 mil pessoas para o qual foram vendidos ingressos. Caso vivesse, o Rei do Pop faria uma turnê milionária. Seu funeral representou uma morte valiosa que, substituindo a vida, tornou-se o show com o lucro esperado. Não poderia ser diferente. Ninguém entenderia a morte de Jackson sem uma festa correspondente à envergadura de seu poder. A potência do capital, que era a majestade desse rei, sobreviveu à morte que seria o momento capital da vida de todos os que não são reis. Morte mais valiosa que a vida no extremo do capitalismo.

Que a morte do Rei do Pop esteja relacionada a um possível assassinato nos coloca diante de uma velha questão do direito, o crime de lesa-majestade. Sabe-se que esse crime não é um assassinato comum. Mais que isso, é uma espécie de crime duplo, contra o corpo de um rei que é tanto homem vivo como qualquer outro, mas também contra o que em seu corpo é a majestade, a realeza, a encarnação mística da autoridade que legitima sua condição de rei. Bom lembrar a famosa tese de Ernst Kantorowicz sobre o duplo corpo do rei, corpo vivo e corpo político em uma só pessoa. Que o comportamento correto de súditos comuns ou mesmo não súditos envolva que não se possa tocar fisicamente nos reis e rainhas é apenas um memento do significado profundo desse corpo sagrado – intocável, intangível – que não pode ser profanado.

Michael Jackson, o Rei do Pop, como os reis franceses ou os imperadores romanos que encarnavam o princípio da soberania, teve dois corpos, duas vidas e duas mortes. Um corpo humano e um corpo que encarnava a mística da autoridade. Ao primeiro corresponderam a morte física e o funeral tardio do cadáver real; ao segundo correspondeu a morte que não morre, à qual correspondeu o funus imaginarium, o funeral da imagem, funeral fantasioso que permanece como uma espécie de vida da morte. Uma vida que só acabará quando outro rei do pop vier substituí-lo. As 13 imagens de cera expostas no Madame Tussauds são esperança de que o rei uma dia poderá descansar em paz, quando vida e morte se confundirem no espectro da imagem.

Capitalismo macabro

Essa morte e os rituais que a acompanham na contramão da morte banal de quem, não podendo ser rei, é sempre súdito não pode ser compreendida sem que se vise ao estágio atual do capitalismo. A cena em que se inscreve a morte de Michael Jackson revela a forma mais pura e especializada do capital em nosso tempo. Assim como o rei antigo encarnava a mística do poder, Michael Jackson, com seu corpo de artista, famoso e rico, encarna a mística do capital, forma abstrata e radical do poder atual. Uma novidade relevante atinge a compreensão da morte de Michael Jackson tornada emblemática. Guy Debord percebeu o capital que na imagem encontra sua forma abstrata. Se a imagem surgiu como uma necessidade de superar a morte, hoje a imagem não é apenas a morte, mas, como imagem da morte, é a morte da morte. A imagem absoluta, a imagem em seu sentido estrito de “capital” aparece como aquilo que sobra de um corpo em sentido literal. Na imagem da morte isso é duplicado. A imagem só aparece em seu valor total quando supera o corpo, deixa-lhe o vestígio do cadáver e se faz novo corpo como pura imagem na figura de cera como novo corpo que dispensa o corpo.

A imagem total é a imagem após a morte. Ela é a total negação do lucro para o corpo do qual resulta a imagem. Um corpo morto jamais aproveita de si o que outros aproveitam. O corpo do cadáver no aproveitamento total por parte dos outros está inscrito na prática da exploração alienada. Do mesmo modo a imagem. O corpo do morto realiza o princípio fundamental do capitalismo que é o lucro total sem devolução nem pagamento.

Não me refiro ironicamente ao fato da morte que não sabe de si, mas à relação entre corpo e imagens. O mesmo vale para o corpo vivo que muitas vezes se vale de sua imagem como objeto de sobrevivência, a mesma imagem que faz dele algo morto desde que a imagem de um vivo é tão espectro quanto a de um morto que se faça aparecer. É curioso que, enquanto o império norte-americano passa pela crise, Michael Jackson, como empreendimento, valha mais morto do que talvez tenha valido como vivo. Comparado ao capitalismo que o sugou em vida em sua doação ou venda ao show, ele continua valendo mais que tudo. Assim é que o capitalismo se apresenta de uma vez por todas em sua forma mais essencial, a macabra, na qual a figura muito conhecida da avareza se declara absoluta como miséria da condição humana.

Os meses tanatográficos entre a morte e o ritual final do enterro do Rei do Pop vão além do luto como tempo doméstico ou pessoal em que a morte de um ente querido é elaborada. Em escala policial e penal, pode-se dizer que se trata do tempo da investigação sobre a causa mortis. Mas o tempo vasto dos funerais de Michael Jackson avisa sobre a forma do luto em sua condição paradoxal: um gozo sobrevoa a dor dos outros e, sem pena, vem mostrar o inevitável tempo da rapina próprio à experiência do capital. Urubus miram o cadáver para retirar dele resquícios do que ali fora vivo, aquele mínimo aproveitável na escala de metas da avareza. Há sempre algo de vivo em um morto, as ressonâncias de sua morte confundem a vida, seu espólio, sua herança, a memória. De Jackson teremos para sempre a arte, a voz e o corpo bizarro da última figura de cera. O tempo do capitalismo no gozo da avareza que o caracteriza não deixa nada de graça, não esbanja, não doa, tudo calcula, com tudo lucra, tudo logra. Ninguém lhe escapa. Se um morto tivesse direitos, certamente daria todo o seu dinheiro para ser simplesmente esquecido.

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