Solidão não, sol sim!

Solidão não, sol sim!
(Foto: Ankhesenamun/Unsplash)

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de agosto de 2020 é “solidão”.


Era 1974 e eu tinha 10 anos. Cursava a quarta série do estudo fundamental de hoje. Tinha perdido meu pai para uma tuberculose da desigualdade social. Minha mãe, com quatro filhos menores, trabalhava como cozinheira  em dois empregos,  inclusive aos finais de semana. Cíclicos tempos de crise dentro de uma ditadura civil-militar, que só não ignorava os pobres nos hipócritas processos eleitorais e que não só torturava e matava nos porões do DOPS, mas também matava ignorando a seca do sertão, a violência doméstica patriarcal, a crescente “favelização” urbana e ainda ajudava uma elite blasé a manter a população excluída, inculta, bebendo a ilusão da taça do futebol.

Naquela infância criativa, sem celular ou brinquedos de pilhas, eu sonhava em entrar na escola que era colada à minha casa! Como havia poucas escolas pré-primárias, entrei direto no primeiro ano. Essa demora “acadêmica” me fez extremamente curiosa sobre a aprendizagem e eu, menina negra, tímida, periférica, sem lugar afetivo, cultural, social ou estético, despontava espontaneamente como primeira aluna da escola.

As pequenas solidõezinhas já apontavam nos risinhos e recusas de crianças para brincarem ou serem meu par nas festas juninas da escola. Eu, muito tranquila e meio bobinha, não via maldade em nada. Meu lugar interno já estava em curso… potente e ainda, por mim, desconhecido. Só queria aprender, apreender… Ainda hoje sinto aqueles-esses meus olhos faiscantes… Brilhantes de vontades de saber e queria ver de tudo… Embora não me vissem… A solidão era deles!

Essa máxima infantil “abandônica” se repetiu e (se repete) durante a vida, porém a árvore, maleável, era vigorosamente forte.

Corria o ano quando fui informada pela professora que eu estava concorrendo a um prêmio de melhor aluna, mas sem muitas explicações. Dei pouca importância e nem comuniquei em casa. Soube só depois que  haviam vários critérios como nota, frequência, “comportamento”, e que só faltava uma etapa para a publicação do meu nome no Diário Oficial. Era um programa municipal de São Paulo que premiava os melhores alunos das Diretorias Regionais de Ensino, na época chamadas de ARS, as delegacias regionais de ensino do bairro do aluno.

A pessoa ganhava como melhor aluna/o das escolas do bairro. Era um acontecimento! Mas não pude entender a dimensão quando a professora anunciou que eu ganhara e enviou um bilhetinho mínimo para que minha mãe me levasse ao Ibirapuera, onde seria a cerimônia. Minha querida, provedora e responsável mãe não queria faltar do serviço para ir, inclusive porque não foi oficialmente informada do que realmente se tratava (ah… as eternas negligências com as mulheres negras…). Tão trabalhadora e, por negligência da escola, deixou de viver esse pequeno orgulho! Ela pediu a uma amiga dela para me acompanhar. Uma aluna e também vizinha quis ir junto e fomos de ônibus com a professora. E que aventura! Eu, mega feliz, não com o prêmio, mas por estar saindo com a minha professora querida, minha referência de estudo.

Então veio a solidão como experiência da invisibilidade. Além da minha mãe, sua amiga e a professora, ninguém jamais me cumprimentou por isso.  A escola nunca fez nenhuma menção. A diretora nunca me elogiou. Nenhum coleguinha da classe, além da minha vizinha, me deu parabéns… Eu só tinha dez anos, ganhei um prêmio para a escola e parecia que só eu sabia disso! E era tímida demais para falar dessa conquista. Muitos anos depois, entendi a importância do programa e da seleção. A criança ganhava uma plaquinha com seu nome e 200 livros infanto-juvenis (absolutamente fantástico para mim!), que eram entregues no endereço do aluno, já que na época, quem tinha carro era uma elite. Imagine minha alegria ao ver um caminhão chegando a uma vila humilde, parar no meu portão para me entregar tantos livros!

A solidão de um prêmio silencioso, felizmente, não me afetou. A solidão virou sol de entusiasmo, aumentando a paixão pelos livros. Tornava-me mais e mais louca pela biblioteca do bairro.

Anos depois reencontrei essa professora, que ficou feliz em saber que entrei na USP e tinha uma carreira em curso, desviando, esforçadamente, do perfil que a sociedade programa para as mulheres negras, em um país que tem, para elas, projetos sub-repticiamente cravados em trabalhos subalternos. E como foi árduo o sobre-esforço de muitas como eu.

A solidão não encontrou lugar no meu íntimo, mas foi cruel com muitas mulheres negras e pobres por décadas. Muitas foram gigantes! Prosperaram, produziram conhecimentos! Em sua maioria, outras foram suportes de uma geração nova que reivindica um lugar mais digno, um lugar em que a solidão possa ser opcional e não estrutural, colonial, imposta, desumana, mas com igualdades, equidade nas conquistas e direitos plurais  e liberdade para espontâneas poesias.

Solange Teixeira de Lima, 56 anos, São Paulo, SP

 

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