Solidão em 2020

Solidão em 2020
Foto: Denny Muller/Unsplash

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de agosto de 2020 é “solidão”.


Solidão de dentro e solidão de fora. Só. Sozinho. Solilóquio. Solipsismo. Solitude. Sou. Antes de tudo, sou só. “Somos sós e de mais ninguém”, leio em um bastidor com letras em bordado livre no Museu do Isolamento, um perfil do Instagram que reúne as mais diversas produções acerca dos nossos dias pandêmicos. E são tantas as formas de solidão. No mês anterior deparei-me com um trecho do livro “Noite em Caracas“, da venezuelana Karina Sainz Borgo, em que ela falava sobre as mulheres que varrem para esquecer ou mesmo para ordenar suas vidas solitárias. “Passar aspirador tem sua graça, varrer também, te libera de pensamentos incrustados”, escreveu a argentina Ariana Harwics em seu último e recente lançamento intitulado “A débil mental“. Entendo e me identifico com essas passagens dos livros mencionados.

No período em que morei sozinha, todas as minhas manias de organização e limpeza vieram ainda mais à tona. Dedicar tempo à limpeza externa era um caminho para também organizar cada cantinho de dentro, para organizar mentalmente os trabalhos da faculdade ou, depois, os planejamentos mentais da semana com os alunos. Nesse ato de organizar a casa, organizava não apenas cada prateleira interna, mas conversava comigo mesma ou dava sequência a assuntos e conversas pendentes.

A solidão que conheci anterior a esse período morando sozinha, foi aquela que, em alguma curva do caminho a dois, pode nos ser imposta: a do desvencilhamento, do desencontro, do desgaste para uma das partes envolvidas, restando ao outro – não após a tentativa e frustração do juntar dos cacos – aceitar que não dá mais.

O tempo morando sozinha foi dos maiores aprendizados que tive na vida e lembro dele sempre com carinho e nostalgia. Foi importante me bastar, aprender a me sentir bem com a minha própria companhia. Limpar a casa, abrir e tomar o vinho sozinha, cozinhar o prato que fosse antes de para alguém, para mim mesma.

O que se seguiu após esses anos, foi a solidão do retorno à cidade e à casa dos pais. Um tipo de solidão diferente, pois não contava com a ausência de pessoas no meu entorno. Era a solidão dos que retornam e se vêem deslocados; a solidão dos que precisam encontrar seu lugar no mundo mais uma vez, quase como um recomeço. A solidão desse período foi e segue me parecendo longa. Por algumas vezes, quando as atividades profissionais eram ainda mais escassas, logo quando cheguei, decidi fazer da organização e limpeza da casa dos meus pais quase um trabalho. Canalizava minha energia nisso todo início de semana, da melhor forma possível. Ao organizar tudo era como se eu validasse minha presença ali, no mundo, além de ordenar parte das angústias, da ansiedade e confusão que essas mudanças e transições podem nos acometer. Foi nesse período que talvez eu tenha tido o contato mais espreito com as frustrações e com a solidão das “donas de casa”, a qual minha mãe já foi um dia, com a diferença de ter duas crianças para conciliar com o trabalho doméstico.

No período pandêmico em que vivemos nesse assustador-revelador-(quiçá)transformador 2020 (vinte-vinte), vivenciamos todos algum tipo de solidão. Solidão que pode parecer assolar pelo simples fato de não podermos nos reunir como em tempos anteriores à quarentena e à necessidade de distanciamento social; solidão no convívio sufocante do confinamento e a solidão da incompreensão dos que estão a nossa volta para com nossas angústias, incertezas, falta de perspectiva e medo, porque no final das contas estamos todos sendo forçados a viver algo que culturalmente não nos foi ensinado: viver no presente.

“O melhor lugar do mundo é aqui e agora”, mas tem sido difícil viver em suspensão e lidar com as incertezas quando queremos projetar nossa vida o tempo inteiro no futuro, porque, embora o hoje sempre tenha sido e agora, mais do que nunca, seja tudo o que temos, “no presente a mente, o corpo é diferente” e as coisas estão caóticas e desesperadoras para muitos de nós. E em meio a esse desespero que por momentos nos faz acreditar que somos os únicos a estarmos em uma travessia difícil, nos tornamos menos tolerantes com o outro, e, a partir daí, há a solidão do angustiado e a solidão do que se sente impotente, insuficiente e inconveniente diante do outro. Finalizo esse texto mais uma vez lembrando Belchior.

 

“No centro da sala, diante da mesa

no fundo do prato, comida e tristeza  a gente se olha, se toca e se cala

e se desentende no instante em que fala.

Medo, medo, medo, medo medo.

Cada um guarda mais o seu segredo a sua mão fechada, sua boca aberta o seu peito deserto, sua mão parada lacrada e selada, e molhada de medo”. 

 

Juliane Lino, 34, é educadora musical em Francisco Beltrão, PR. No período forçado de quarentena, tem resgatado com um tanto mais de disciplina um hábito da infância e adolescência, encontrando na escrita um caminho para transformar seus dias e os das pessoas ao seu redor.

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