A solidão da madrugada

A solidão da madrugada
Foto: Jaredd Craig/Unsplash

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de agosto de 2020 é “solidão”.


A madrugada abriga uma solidão particular.

Enquanto tudo se apaga – nunca por completo nas metrópoles –, eu em geral sinto meu cérebro se acender. Li em algum lugar que a noite torna o cérebro mais ativo, mas há informações tão diversas sobre o cérebro que nunca deixei de vê-lo como um mistério resguardado por si mesmo, como se nunca atingisse a capacidade de se autocompreender.

Há toda uma geração que funciona na solidão do céu escuro, e eu me pergunto o motivo. Talvez o dia seja tão cheio de estímulos e vozes que só possamos acessar certo potencial mental em meio à solidão e ao sono dos outros. É raro ter interrupções ou compromissos durante a noite, e o trabalho é poupado da pressão de ser apressado em detrimento de outro compromisso.

A solidão pode ser produtiva, e pode ser parte de nós.

Como uma pessoa que gosta da filosofia wildiana de “definir é limitar”, eu nunca realmente soube que era introvertida. Conhecia a palavra e sabia que tínhamos alguma afinidade, mas foi na quarentena que descobri, de maneira aleatória, que ela carrega um conceito familiar.

Quando soube que teria que ficar em casa, a notícia não veio como uma explosão nuclear em meu cotidiano. Sempre gostei de passar tempo sozinha e o contato com outras pessoas nunca foi uma necessidade diária. Os únicos seres humanos em meu cotidiano são meus familiares, que, em quase vinte e dois anos, já são quase um apêndice de minha personalidade.

Para mim, a madrugada realiza um desejo que lateja durante as manhãs e tardes divididas entre outras pessoas: a de enfim estar sozinha.

As noites são ideais para se trabalhar e refletir. E, para alguém como eu, para se comprazer no fato de que nenhum compromisso social acontecerá tão cedo.

Mas, por mais que queiramos ser diferentes um dos outros, nos reconfortamos em nossas similaridades, e é sempre um prazer inesperado encontrar criaturas que funcionam sem luz solar: animais noturnos que fazem aparições rápidas – gatos caminhando sobre muros com seu rebolado displicente, mariposas fugindo da escuridão – e levam um pedaço de seus pensamentos com eles; e, naturalmente, as pessoas, que encontram uma nova motivação para conversar durante as horas sombrias, pelo prazer de contrariar a natureza de dormir. A incongruente alegria que é falar com outra criatura noturna, quando um dos prazeres da escuridão é justamente o afastamento social, é um dos mistérios incríveis do cérebro.

O único problema dessa solidão produtiva é quando ela não funciona e, ao invés de trazer contentamento e motivação, ela nos enfurna em labirintos de ansiedade e memórias esquecidas, resgatadas de lugares ignorados durante o dia. Por sorte, para aqueles que se aconchegam na noite como os diurnos se abrigam ao sol, esse não é um fenômeno constante.

O jornal El Mundo uma vez publicou uma matéria sobre como usamos das redes sociais para nos distanciar de conflitos internos. Penso que talvez por isso a solidão possa soar tão agoniante: estar sozinho não significa apenas a falta de companhia, mas a companhia em si mesmo, e essa segunda pessoa em nós não costuma se preocupar em ser agradável.

Essa segunda voz também ganha espaço na madrugada, mas, para quem se acostuma com ela, às vezes traz boas sugestões. Algumas um pouco excêntricas e espalhafatosas, promessas que a disposição não acompanhará no dia seguinte – vamos fazer mais ginástica! –, mas outras um pouco menos agressivas à sua boa vontade – que tal fazer um desenho amanhã? – que preenchem o caos das manhãs. Essas resoluções, por mais improváveis que possam ser, são também as mais sinceras. As promessas que fazemos antes de dormir carregam alguma verdade sobre nós, sobre arrependimentos e esperanças, que são mais imediatos e verdadeiros do que quando a luz vem cegá-los e adiá-los, prometendo mais tempo. Não é à toa, afinal, a noite desvele sofrimentos diários, expostos como feridas, sensíveis ao tato, mas mais reais do que os curativos que as ocultam durante o dia.

Mas, por mais solitária que seja a sua natureza, o ser humano é um animal sociável, projetado para se apoiar em comunidades, para proteger e ser protegido pela presença de outros. Torna-se um problema equilibrar essas madrugadas internas, essa necessidade de introspecção, com o convívio social. E é isso o que torna a solidão pesarosa, como tudo o que é imposto sem consultar a vítima de sua imposição.

A presença dos outros é uma exaustão física e mental, às vezes, mas a sua ausência guia a voz mental em direção à caminhos antigos e escuros de seu próprio labirinto de fluxos de pensamentos, e se perder neles vai se tornando cada vez mais fácil, um Teseu que nunca recebeu uma fio de lã de Ariadne.

Estudos dizem que ninguém suporta a realidade o tempo inteiro. Mas ninguém sobrevive sozinho consigo mesmo, tampouco. A solidão calorosa da madrugada, o alívio mental da solidão, vão até o céu começar a se tingir de dourado outra vez, e de repente o labirinto asfixiante encontra uma direção para fora de si mesmo. E isso vai ser sempre algo para se esperar.

Giovanna Barsotti, 21, mora em São Paulo. É formada em Letras com Habilitação em Tradução e gosta de passar suas madrugadas lendo e escrevendo.

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