Sokurov claustrofóbico
O cineasta Alexandr Sokurov passou a ser cultuado entre os cinéfilos brasileiros com seu Arca Russa (2002), no qual a câmera viaja, ao longo de um enorme plano-sequência de mais de uma hora e meia de duração, através do espaço e o tempo da Rússia – isto é, através da história de seu país.
Agora, chega ao país, no próximo dia 29 de junho, sua versão para uma das obras mais importantes da literatura mundial – o Fausto , de Goethe (1749-1832). O filme, lançado em 2011, conclui a tetralogia que se iniciou com três personagens cruciais da história mundial: Hitler (em Moloch, de 1999), Lênin (em Taurus, de 2001) e o príncipe japonês Hiroito (em O Sol, de 2005).
O problema é que Fausto, diferentemente dos outros três, é um personagem sobre o qual apenas supõe-se que tenha existido. Contudo, ainda que tenha sido de carne e osso, só adquiriu estatura ao ter se tornado inspiração para a ficção – a maior delas, justamente a de Goethe.
Por que então Sokurov escolheu um personagem ficcional para concluir sua série sobre protagonistas da história mundial?
“Considero Fausto um personagem absolutamente histórico na medida em que traz em si uma série de marcas típicas de seu tempo, tanto em relação ao contexto histórico quanto científico. Sob esse ponto de vista, Fausto parece muito ‘histórico’ para qualquer pessoa educada”, diz em entrevista concedida à CULT por e-mail.
Outros grandes escritores também retomaram a figura de Fausto, como o inglês Christopher Marlowe (1563-93) e o alemão Adelbert von Chamisso (1781-1838) e, sobretudo, Thomas Mann (1875-1955). Desses todos, diz Sokurov, apenas o último tem uma “correlação importante” em seu filme.
Entre quatro paredes
Fausto transmite uma forte sensação de claustrofobia, como no quarto baixo e apertado do protagonista, nas ruelas em que as pessoas esbarram umas nas outras ou na própria aldeia, aprisionada entre as colinas – o que, em certa medida, se contrapõe às ambições cósmicas do personagem de abarcar todo o conhecimento possível.
Essa condição paradoxal do ser humano – solitário e frágil, mas almejando a totalidade – remete à obra de outro cineasta russo, Andrei Tarkóvski – influência que Sokurov, porém, nega peremptoriamente: “Nem em Fausto nem em qualquer outro de meus trabalhos há motivos ou intonações de Tarkóvski”.
Mas ele admite a influência do expressionismo alemão, sobretudo do Fausto de Murnau: “Essa sensação de claustrofobia é certamente um sinal distintivo da estética de Murnau [1888-1931]”.
Extremamente pictórico, o filme também dialoga claramente com as pinturas de Bosch e Rembrandt, especialmente na cena do encontro entre Fausto e sua amada, Marguerite. “Sem dúvida alguma, as tradições e a estética de Rembrandt influenciaram a evocação visual em meu filme”.
Assim como na obra de Goethe, Sokurov realça deliberadamente o poder dos sentidos – como o tato, o cheiro e a visão – sobre seu personagem, mas lamenta os limites da linguagem cinematográfica.
“No filme há, de fato, uma tentativa de abarcar toda a variedade de impressões sensuais e de sentimentos. Entretanto, há um limite de possibilidades físicas, e os atuais equipamentos técnicos do cinema não podem expressar todo o poder dos sentimentos humanos”.
Nas cenas finais, Fausto está perdido em uma paisagem sublime e terrível que sugere referências místicas – e sabe-se que elas foram importantes para Goethe, leitor de Shaftesbury na mocidade. Mas Sukorov é taxativo em relação a isso: “‘Misticismo algum pode ter valor”.
Embora sua versão seja quase toda focada na primeira parte do livro, Sokurov não tem planos de fazer uma continuação.
(3) Comentários
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O filme é grandioso, lindo ainda que pesado (não propriamente claustrofóbico). Requintado na fotografia e nos excelentes atores. Nem nos versos de Goethe o Fausto parece tão atual, ao mesmo tempo em o filme nos convence o tempo todo de estarmos naquele tempo. Sem truques baratos, o filme é ficção mas assusta pela sua profunda dimensão real. Nunca Mefistófeles foi tão natural e realisticamente personificado (tão real e atual que parece um politico brasileiro qualquer, destes que protagonizam escandalos tipo “Cachoeira”). Talvez valesse Sukorov seguir a pentalogua filmando algo por aqui… O artigo acima poderia ter sido mais honesto em apontar as muitas qualidades deste grande filme.
Um filme do Fausto baseado na versão do Goethe e ainda com inspirações de Hieronymus Bosch ? Eu preciso assistir esse filme !!
A palavra grandioso, utilizada pelo primeiro comentador, expressa bem o que senti ao ver esse filme memorável. Só ajuntaria que o mito germânico filtrado pela sensibilidade russa adicionou um valor novo e perturbadoro à velha história da busca de conhecimento a todo preço, em detrimento da ética e da moral. E que atores sensacionais ! E que fotografia ! E que virtuosismo coreográfico na direção de atores ! bravo, Sokurov. Queremos mais.