Sobre a esperança
Robert & Shana ParkeHarrison, ‘Burn Season’, 2003 (Reprodução)
Para Erisvaldo Santos
Há dias ando sendo provocada pela esperança. Eu quero falar sobre isso, mas para evitar mal-entendidos, quero começar dizendo que, apesar de toda a análise que segue, eu tenho muita esperança.
Sempre tive. A esperança é uma virtude dos despossuídos, das minorias políticas, dos pobres, dos condenados da terra. Sabemos como somos salvos de nossos problemas porque fazemos alguma coisa com esperança.
É claro que toda religião é marcada pela esperança justamente porque, na origem, toda religião se constrói sobre a limitação humana que é vivida pelas pessoas, sobretudo quando se encontram em posições precárias diante do poder. Apesar das deturpações que as religiões sofrem pelo poder que homens de má-fé exercem sobre a boa-fé humana, no fundo, a religiosidade é sempre um desejo de esperança.
E o que é a esperança? Tenho vontade de definir a esperança como o desejo de ter desejo.
Digo isso porque, a meu ver, nós precisamos hoje fazer algumas distinções. Devemos desejar o desejo, mas vejo um perigo imenso na esperança não pensada, na esperança sem reflexão, porque ela não nos conecta com o desejo do desejo, que é o lugar onde a esperança se apresenta em toda a sua luz.
Todas as categorias conceituais que usamos na forma de verdades irrefletidas são um perigo para todos nós. Quero dizer com isso que devemos nos ocupar em entender melhor o que usamos tão naturalmente que esquecemos de pensar sobre. A esperança não pode ser naturalizada, é isso o que quero dizer. Sob pena de se perder, por meio disso, seu potencial realmente transformador, que implica a manutenção do desejo.
Voltando à distinção necessária, é preciso opôr a esperança como desejo de desejo e, desse modo, como salto para o desejo e para o mundo que se constrói por meio dele, a uma esperança como auto-realização. A esperança não pode ser uma mera palavra que nos daria aquilo que, na verdade, ela apenas promete. Com a esperança, muitas vezes, acabamos nos contentando com afirmá-la. Mas o que é agir em nome dela?
Se quisermos falar de uma ética da esperança, devemos pensar a esperança que podemos ter e, mais ainda, a que devemos sustentar. Assim, devemos fazer com a esperança o mesmo que precisamos fazer com a felicidade, que também precisa ser pensada. Há mediações que precisamos fazer se não quisermos falar ou agir de modo ingênuo. Às vezes somos de fato ingênuos, é inevitável. Mas podemos superar isso. E esse esforço pode ser compreendido como esperança.
Temos que repensar a esperança se quisermos re-potencializá-la. Se a minha missão intelectual é questionar, talvez a missão de um sacerdote seja esclarecer, talvez a missão de uma feminista seja potencializar, certamente a missão de um político seria “realizar”. E falo em “missão” porque a esperança que nos cabe construir é da ordem de um dever histórico. E o esforço na própria tarefa histórica é a única coisa que realmente apresenta o sentido da esperança.
A esperança é um conceito fundamental, mas assim como aconteceu com diversos conceitos ela também foi capturada para os fins do poder. Dos interesses do capital. As teologias que reduzem a esperança à prosperidade, as práticas capitalistas que reduzem a esperança a um estilo de vida baseado em consumo e produtividade para mais consumo, humilham a esperança.
Ouvi Erisvaldo Santos a falar das “Encruzilhadas” e entendi o que pode ser a esperança em um sentido em que eu não havia pensado. Esperança é justamente o que temos quando nos encontramos em uma encruzilhada. É a nossa relação com caminhos possíveis, caminhos cruzados, caminhos abertos, caminhos por abrir. A esperança é um caminho que temos.
Encruzilhada é um conceito potente demais e profundamente arraigado na forma de pensar popular brasileira. É o termo que temos para expressar nossas escolhas, nossas angústias e nossas decisões por vir. E a esperança é o caminho e os passos que damos nesse caminho.
Toda encruzilhada nos coloca diante de um otimismo teórico, ao mesmo tempo, um otimismo prático. Apesar de toda a dor que vemos nesse mundo na forma de um redemoinho.
(5) Comentários
Ualll!!!!!!
Vitoria da Conquista-ba.
Querida , Marcia. Leio o seu texto e retomo par um lugar teórico que me é muito caro; organicamente caro, pois faz objetivo com o meu corpo e todo processo constituinte no qual estou. É um lugar que , quando eu lia o que você escrevia não tinha consciência que as práticas viriam a ter os mesmos objetivos de vid no qual estou inserido. Eu a vi de um lugar de poder da supremacia branca. Eu era um garoto do interior da Bahia,
comprando seus livros como estratégia para ma vida feliz. Porque eu já entendia o quão eu era infeliz vivenciando o racismo,
o machismo e a homofobia na sociedade n qual eu estava. Corporeidades.
O que me instigou foi o conceito de ‘ esperança’ no qual você traz- nessa sua nova corporeidade e subjetividade que me deixa inquieto-, fez com que eu lembrasse anos atrás quando, na casa dos meus 16 anos lia compulsivamente a mulher que iria me educar. Ler Marcia Tiburi já era um processo de imanência política, dessa micropolítica. Não sei se desejo prolongar esta carta, por mais desejos que eu tenha.
Lembro que certa vez você disse que ter esperança não era potente, pois se se tratava de condições psicológica cristã … Hoje a vejo numa outra compreensão acerca da esperança, e creio que esse novo olhar esteja dado por conta da sua iLemoso na política. Condenados da terra .
Respeitosamente,
Daniel Lemos
Que texto lindo. Obrigada.
Tem um sentido limitado de esperança na vida, também, a dimensão que separa a esperança individual da coletiva. E que, assim, contrapôe uma esperança na humanidade, como algo que pode vir a ser melhor do que já foi ou tem sido, daquela que insere a esperança como uma realização individual. Admitir o “homem como lobo do homem” se inscreve no desejo de não ser vítima do abate oferecendo a ele a esperança de estar entre os fortes. O que reforça a esperança em seu aspecto de caridade, pois só os de cima poderiam estender a mão, contra uma esperança baseada na ciência que pode compreender os problemas humanos como problemas humanos e não como problemas de um Deus que fez os homens à sua semelhança e, portanto, não poderiam ser mudados.
Cada instante é uma encruzilhada e estamos condenados a escolher. Cada escolha implica num objetivo e com ele vem a esperança e com a esperança vem o medo e nessa dialética vem a ansiedade e a angustia. Este é o resumo do drama humano
Não posso me libertar da escolha, mas talvez consiga me libertar da esperança então aí também me libertaria do medo, da angustia e da ansiedade e viveria o tempo da paz, do eterno.
Marcia diz: “- E falo em “missão” porque a esperança que nos cabe construir é da ordem de um dever histórico. E o esforço na própria tarefa histórica é a única coisa que realmente apresenta o sentido da esperança.”
Aceito esta esperança. Ela me liberta do medo, preenche minha vida com alegria e me joga para o futuro.
Obrigado Márcia.