Perfil: Francisco Catão

Perfil: Francisco Catão
O teólogo, doutor em teologia pela Universidade de Estrasburgo, Francisco Catão (Foto: DIvulgação)

Diz a Regra de São Bento que, aparecendo um aspirante à vida monástica, os monges não devem facilitar-lhe a entrada. Pelo contrário, devem deixá-lo bater à porta do mosteiro, por uns quatro ou cinco dias, injuriá-lo e criar dificuldades, a fim de ver se ele é capaz de suportar com paciência e persistir no seu pedido. Caso ele suporte e persista, os monges concedem-lhe o ingresso. Seus primeiros dias serão na hospedaria do mosteiro e somente depois comporá o grupo dos noviços, exercitando-se no serviço a Deus. Nessa fase, um monge mais velho zelará pelo progresso de sua alma e todos prestarão atenção si revera Deum quaerit, ou seja, se ele realmente busca a Deus.

Toda essa austeridade da Regra escrita no século 6 encontrou, certamente, na história do monaquismo cristão, maneiras de ser abrandada, e, em nossos dias, será impossível encontrar algum lugar do planeta onde um mosteiro faça o aspirante ficar quatro ou cinco dias diante de portas fechadas ou lance injúrias para testar sua paciência. O sentido do preceito, porém, é claro: se um aspirante procura a vida monástica porque ama a Deus e o busca, então é um bom candidato a monge; do contrário, o mosteiro não é seu lugar.

Francisco Catão, carioca nascido em 1927, encontrou nesse espírito beneditino o programa de sua vida. “Pensando naquilo que eu poderia falar sobre mim mesmo, de uma coisa não tenho dúvida: o que dá unidade à minha história é Deus! Em todos os momentos de minha vida busquei a Deus! E, se há algo a dizer, esse algo é Deus!” Depois de um sorriso sereno, Francisco Catão continua: “E como está raro ver alguém falar de Deus. Mesmo na Igreja [Católica], enfati-za-se mais a estrutura [administrativa] do que Deus. Os problemas religiosos são resolvidos em termos de estratégias, disciplina, evangelização, pastorais, mas pouco se fala de Deus! O resultado [da raridade com que se fala de Deus] é que, muitas vezes, ao pensarem em religião, as pessoas têm em mente mais as estruturas humanas, os personagens, os fatos curiosos, e não relacionam religião com Deus. Mas toda religião deveria centrar-se em Deus!”. Ri, então, e conta o seguinte episódio, vivido alguns dias atrás: “Convidado por um repórter a escrever sobre a pedofilia na Igreja, neguei-me a fazê-lo, argumentando que minha área específica é Deus, a Trindade, Jesus Cristo. Mas fiquei mais surpreso com a reação do jornalista, que parecia não ver relação entre Igreja e Deus!”.

Depois do riso, Catão retoma: “Fico abismado ao ver como a religião, muitas vezes, é dissociada do mistério de Deus e associada apenas a temas morais, econômicos, políticos. Mas Deus, que deve ser o centro das religiões, não aparece”.

O ser humano como um ser de transcendência
Para quem conhece Francisco Catão, a centralidade de Deus não é uma afirmação retórica. Nos últimos 20 anos, ele tem se dedicado ininterruptamente ao ensino da teologia. De 1955 a 1965, também esteve mergulhado no mundo da reflexão teológica, sem contar, ainda, os anos de sua formação, no convento dominicano de Saint Maximin (departamento do Var, sul da França), quando leu, na íntegra e no texto em latim, a obra de Tomás de Aquino.

Mas a centralidade de Deus tem raízes mais profundas do que simplesmente as conjunturas da vida ou da atividade profissional de Francisco Catão. Essa centralidade se revela no pensamento que ele tem desenvolvido a respeito do ser humano como um ser de transcendência.

Em diálogo com a ciência dos nossos tempos, Catão parte dos dados estabelecidos pela antropologia contemporânea para dizer que a busca de sobrevivência foi o que provocou o aperfeiçoamento e consequente desenvolvimento do cérebro dos hominí-deos. A convivência específica da família e do clã humanos tornou-os cada vez mais capazes de distinguir-se de seus antepassados e abriu-lhes o caminho para uma vida especificamente humana. A originalidade humana, assim, deve ser buscada na relação interpessoal; prevalece o que hoje denominamos de partilha, e não apenas a sobrevivência da espécie. No caso humano, portanto, a necessidade da sobrevivência possibilita uma “abertura para além”, para a compreensão recíproca, o respeito, o amor e a amizade. Os humanos acedem a uma esfera nova de experiências, inacessível aos primatas.

Em continuidade com esse dado da ciência, o ser humano passa a ser visto radicalmente como um ser-para-o-outro: “como ser-para-o-outro, mulheres e homens se tornam tanto mais o que são chamados a ser quanto melhor é sua relação pessoal de um com o outro; quanto mais humano é o espírito que vigora no seu inter-relacionamento pessoal. Humanizar-se, pois, é sinônimo de espiritualizar-se. Significa, pura e simplesmente, viver, um com o outro, na atualização de uma relação verdadeiramente humana” (Francisco Catão, Em Busca do Sentido da Vida, Paulinas, 1993, p. 58).

A vida humana, por isso, não poderia reduzir-se apenas aos aspectos biológicos, animais, mas conteria uma característica própria: transcender a sobrevivência e abrir-se para um horizonte de sentido inteiramente novo. Dessa perspectiva, a religiosidade humana originária seria a capacidade de perceber o alcance transcendente da relação com o outro e ampliá-la para a relação com um Outro específico: o Transcendente a que se costuma denominar “Deus”. O ser humano seria, assim, naturalmente, capaz de Deus, e sua realização completa requereria o desenvolvimento dessa capacidade. O sentido divino vem ao encontro do ser humano e este pode acolhê-lo, tornando-se tanto mais humano quanto mais se transcender pelo mergulho nesse sentido.

Pensando na alteridade de Sartre, para quem o outro é mero objeto, Catão pergunta-se: “Mas, o que pensar da alteridade na peça sartreana Huis Clos? Lá, o outro não é chamado de inferno para o sujeito [L’enfer c’est les autres!]? O outro não me interpela? Mas Sartre não vê o outro como subjetividade, e, sim, como objeto. Por aí se vê o profundo anticristianismo sartreano”. Na experiência de Catão, o cristianismo e o sentimento religioso em geral são naturalmente possíveis quando se observa a vocação humana à partilha, à amizade e ao amor.

Uma vida e vários caminhos
Engana-se, porém, quem imagina que uma vida centrada em Deus seja uma vida de absoluta calma monástica, como se tudo se passasse na tranquilidade de um claustro. Francisco Catão foi monge beneditino, frade dominicano, deixou a Ordem dos Dominicanos, casou-se, trabalhou com reforma universitária, foi preso pela ditadura militar, exilou-se na Europa, foi empresário, retornou ao Brasil, retomou a teologia universitária e continua atualmente no magistério teológico.

Já enquanto cursava ciências sociais na Faculdade de Filosofia das Faculdades Católicas do Rio de Janeiro (hoje PUC-Rio), Catão descobriu sua vocação monástica: desejo de Deus, de vida espiritual, de consagração religiosa etc. Depois de bacharelar-se, foi aceito no Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, em 1946. Lá teve contato intenso com a patrística, as fontes do pensamento cristão, principalmente Cipriano de Cartago (200-258), Agostinho (354-430) e João Cassiano (370-435). Também estudou filosofia e revelou um pendor visível para o estudo do pensamento de Tomás de Aquino e da teologia especulativa. Em função dessa vocação “intelectual”, foi aconselhado pelo então abade beneditino a pedir entrada na Ordem dos Pregadores. Aceito, fez o noviciado dominicano e foi enviado a Saint Maximin, a fim de estudar teologia.

“Meu desejo era ser religioso, era ser monge. Continuar minha busca de Deus na vida comunitária. Nunca quis ser padre; não tinha em mente o ministério. Mas, como era preciso orde-nar-me se quisesse continuar dominicano, aceitei a missão.” Em 1955, retornou ao Brasil, para ensinar lógica e teologia na Escola Dominicana de Teologia. Depois de algum tempo, como tramitava o projeto de instalação de uma faculdade de teologia na Universidade de Brasília, recém-fundada por Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, Catão foi escolhido por seu superior para obter um doutorado de Estado em teologia, a fim de coordenar a fundação da faculdade. Como, durante seus estudos, ele havia descoberto uma evolução no pensamento de Tomás de Aquino sobre a redenção, escreveu para Yves Congar, em Estrasburgo, e este o aconselhou vivamente a levar adiante o projeto. A tese foi publicada e é uma referência mundial para os estudosteológicos de Tomás de Aquino, como reconheceu, no verbete “salvação” (salut), o Dicionário Crítico de Teologia organizado pelo pensador francêsJean-Yves Lacoste e publicado pelas Presses Universitaires de France.

No período da estadia de Francisco Catão em Estrasburgo ocorria também o Concílio Vaticano II. Os teólogos peritos do concílio iam regularmente a Estrasburgo, para reunir-se com Yves Congar, pois ele sofria de mobilidade reduzida, devido a uma doença neuronal. Por isso, Catão, além de desenvolver seu doutorado, teve o privilégio de acompanhar as jornadas de estudo e debate das quais participavam nomes como Henri de Lubac (1896-1991), Karl Rahner (1904-1984) e Hans Urs von Balthasar (1905-1988). Entre os mais jovens, da mesma geração de Catão, estavam Joseph Ratzinger e Hans Küng.

De volta ao Brasil, em 1965, Catão foi eleito superior da Província de Santo Tomás de Aquino. Essa experiênciafoi-lhe muito dolorosa. Representando seus confrades brasileiros, ganhou certa projeção internacional, pois apresentava, nas discussões da ordem, uma posição de equilíbrio entre os avanços das províncias francesas, por exemplo, e o atraso das províncias ibéricas ou polonesas. Dada essa projeção, Francisco foi convidado a ocupar um cargo de liderança mundial na ordem, mas viu-se instado por outros religiosos conservadores a refrear os ímpetos à esquerda, característico de seus jovens confrades brasileiros. Essa exigência causou-lhe grande sofrimento, levando-o a deixar a ordem e a retomar a vida civil, casando-se e construindo sua família.

Em 1969, foi preso pela ditadura militar. Seu nome figurava numa lista de acusados, embora nunca tivesse integrado nenhum movimento de resistência. Seis meses depois obteve a cassação da prisão preventiva no Superior Tribunal Militar, viveu na clandestinidade por algum tempo, até exilar-se na Europa. Lá viveu por 15 anos, integrando o braço financeiro do Movimento Popular de Libertação e trabalhando, por exemplo, na Intrade, firma fundada em Genebra com o objetivo de financiar a resistência à ditadura no Brasil. Voltou ao país em 1985. Em 1987, casou-se com Laura Souza Pinto, com quem vive até hoje. Retomou a atividade teológica, “com um senso de responsabilidade diante da necessidade brasileira”. Trabalhou na área de ensino religioso das editoras FTD e Paulinas. Atualmente, ensina teologia no Centro Universitário Salesiano (Unisal) e na Faculdade de Teologia do Mosteiro de São Bento de São Paulo.

Uma vida à margem
Francisco Catão, revendo o itinerário de sua vida, considera-se alguém que vive à margem das instituições, inclusive à margem da instituição eclesiástica, com a qual teve certos dissabores, embora tenha nascido, crescido e vivido nela. E à margem, inclusive, das formas hegemônicas de pensamento. Sua visão de mundo, centrada em Deus, não segue os padrões intelectuais que põem a política, por exemplo, no coração da realização humana, nem a pós-modernidade, nem outras opções, embora sempre dialogue com as formas de pensamento de seu tempo.

Catão, na verdade, sempre foi monge. Continua sendo. Sua vida pulsa pela busca de Deus. Como, então, seria fiel a sua vocação monástica se, diante da fome de novidade e movimento, típica do mundo moderno, ele não continuasse marginal?

Se começamos com a Regra de São Bento, podemos terminar com ela: as estruturas institucionais podem ter deixado Catão bater à porta, viver à margem. Mas seu interesse não eram as estruturas, e sim o coração que deveria pulsar por trás delas, ou seja, Deus. E ser recusado não é a marca dos que buscam a Deus?

Algo é certo: se a liberdade interior e a serenidade testemunhadas por Francisco Catão decorrem de uma vida marginal, é preciso fazer o elogio da marginalidade!

(4) Comentários

  1. Parabens à Revista Cult por esta entrevista. Creio que os editores têm plena consciência, não desmerecendo nenhuma outra entrevista e nem o trabalho desta revista que é sempre excelente, de trata-se de um “marco”. O prof. Catão pertence a uma geração em que a Teologia era uma “atividade vital”. Basta ler os nomes que o acompanharam e a importância destes nomes na configuração da problemática teológico-religiosa, com as demais disciplinas do saber humano, no âmbito da emergência de se pensar uma “antropologia” rigorosa, fora da apenas “implícita” que vingou até Max Scheler, o fundador da antropologia filosófica contemporânea. Assim, vemos o quanto pensar a Deus, depois de Cristo, é inevitavel e radicalmente pensar o ser humano. Menos do que isso, é, para lembrar Nietzsche às avessas, teologia de “decadentes”.

  2. Belíssimo texto, Juvenal!
    As cores com que pintou o perfil do Prof. Catão são as de alguém com muita sensibilidade que vê com os olhos de Deus um filho que transcende a matéria no caminho da Verdade! Sua senda às vezes mal compreendida vai além das contingências da vida de todos os dias.
    Somos privilegiados por poder ouvi-lo, por poder partilhar as ansiedades em busca da divindade na humanidade, com alguém como ele.
    Parabéns, Juvenal! “Deo gratias” pela vida do professor Catão.

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