Sejamos como vaga-lumes
(Foto: Arte Revista Cult)
Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de dezembro de 2020 é “renascimento”.
Um novo ano vindo após esta Era Pandêmica. Não sabemos ainda o que será dos nossos dias daqui para frente. Há ainda muita incerteza e o território em que pisamos é movediço e vulnerável. Quantas quarentenas vivemos de março/2020 até agora?! Muitas coisas vieram, outras se foram. E, apesar desse confinamento, do meu esconderijo no campo e das muitas limitações em transitar ora aqui ora ali, como fazia antes, consegui enxergar uma centelha de luz no fim do túnel. Refiro-me ao nosso túnel interior, íntimo. Coisa que antes não tínhamos tempo para distinguir, ou mesmo nos importar se as luzes estavam embaçadas ou apagadas. Se estávamos no escuro ou vivendo à luz de uma lamparina sem pavio. Agora não; o tempo, este nosso amigo invisível tem nos mostrado que vivíamos como mortos-vivos dentro de nossas paredes de tijolo e vidro, dentro dos nossos carros por horas no trânsito, dentro de nosso mundo que era um lugar mais fora do que dentro de nós mesmos. Portanto, muitas pessoas, assim como eu, tiveram seu insight após dias de reflexões íntimas, de convivência consigo mesmas, de momentos conflitantes ou harmoniosos com nossa própria mente. O renascimento parte deste viés de transmutar sua própria essência; conhecê-la na sua profundidade, sem receio do espelho íntimo. Pelos novos modos de vida, a nova maneira de pensar e sentir nessa pandemia, muitos renasceram. Mais fortes, mais solidários, menos individualistas, mais atentos à realidade tal qual ela é.
Entendi, por isso, que estava vivendo um momento impactante dentro de mim: o auto conhecimento se atenuava e dava vazão a uma série de respostas que a vida inteira procurei, para tentar me aproximar mais de mim mesma como um ser social e político também. Ao mesmo tempo que vou tomando mais proximidade de quem sou, passo a observar mais de perto e de forma mais clara, qual identidade política eu assumo diante do meu país. E aí me lembro de um belíssimo ensaio do filósofo francês Georges Didi-Huberman “A sobrevivência dos vaga-lumes”, em que retrata os tempos fascistas na Itália, na Era Mussolini e sua perseguição aos artistas, escritores e todos os que, por razões ideológicas ou não, pensassem diferente da sua cartilha fascista. Neste ensaio, os perseguidos e excluídos representavam simbolicamente as pequenas luzes intermitentes dos vaga-lumes na escuridão; e esta, por sua vez, era retratada na figura do ditador. Penso que, de certa forma, hoje, na turbulência e na escuridão deste momento político também fascista, nós que temos resistido a este estrangulamento da arte e da cultura, a esta esquizofrenia política do atual momento, somos, pois, esses vaga-lumes que surgem e resurgem como pontos luminosos nestes tempos de “bestas e feras”, trazendo a esperança do renascimento; é como se tivesse havido um grande fogo e queimado tudo que existia, e dele só sobrassem as cinzas, assim como no mito grego da ave Fênix, em que há sempre um renascer mais pungente, mais forte após a combustão. Uma das coisas que me lembra muito o renascimento nesses tempos de pandemia e de horizontes muito estreitos é a meditação. Em um dos meus primeiros cursos de longos e intermináveis dez dias de isolamento, aprendi que para renascer é preciso antes morrer. Morrer no sentido de silenciar o que não é seu; morrer no sentido de libertar a mente do vício de sofrer. Só assim há um renascimento pleno. Só na morte há ressurreição. Portanto, em nossas quedas, dificuldades, incertezas nestes tempos de pandemia, fascismo e esquizofrenia política, possamos ser como vaga-lumes, resistir com nossas luzes até quando pudermos. E lembrando aqui uma frase que minha mãe sempre dizia quando me encontrava desacreditada de algo: “no final, minha filha, tudo dá certo, acredite!”
Mírian Freitas, mineira, reside em
Juiz de Fora, MG. Doutora em Estudos
de Literatura (UFF), professora, escritora,
ama viajar, possui grande afinidade
com a natureza.