Saúde pública no Brasil, ontem e hoje

Saúde pública no Brasil, ontem e hoje
(Reprodução/Livro '80 anos de Brasil', Souza Cruz)

 

Conta-se a história da medicina e da saúde pública como uma sequência de acúmulos de conhecimento progressivo, sem disputas, como se a versão predominante não fosse a dos vencedores. Mas assim como na história da cultura e da política, houve disputas: no século 19, saiu vencedora uma versão mais técnica de saúde pública, segundo a qual a assepsia seria mais importante do que aspectos sociais para entender a relação entre saúde e doença.

Essa versão traz como efeito discursivo a ideia de que esse conhecimento seria neutro e não envolveria escolhas sociais, o que é falso. Por mais eficaz que seja uma prática, ela faz parte da sociedade do seu tempo e reflete suas crenças, preferências e preconceitos.

A palavra higiene, quinhentos anos atrás, não tinha nenhuma conotação de limpeza do corpo. Tratava-se de um conhecimento em busca do prolongamento da vida por meio dos princípios dietético dos alimentos. Luigi Cornaro (1464 ou 1467- 1566) escrevia tratados de higiene sobre o que era preciso comer, em que quantidade e quando. Higiene e saúde eram praticamente sinônimos.

Entender a higiene ou o cuidado com a saúde por meio dos hábitos alimentares – e até da subnutrição – de cada um, poderia funcionar como uma crítica política ao sistema econômico, já que apenas uma pequena elite poderia ser saudável enquanto a maioria de miseráveis dos reinos europeus estariam relegados a uma vida encurtada pela pobreza. Essa era uma crítica social importante de alguns reformadores sociais do século 18 e, posteriormente, de médicos do século 19. A popularização da ideia de higiene como limpeza do corpo acontece no século 20, após a aceitação das teorias microbianas.

Já saúde pública ou higiene pública, durante os séculos 18 e 19, poderiam significar o exame do número de doentes e mortos de uma sociedade. Havia também a possibilidade de entender esses termos como a limpeza das substâncias pútridas do espaço público, os chamados miasmas, causadores das doenças de acordo com a medicina desde Hipócrates, no século 5 a.C., até mais ou menos Louis Pasteur, no final do século 19 da nossa era.

O Brasil sempre prezou muito a ideia de saúde como limpeza e foi basicamente nessa corrente que o país agiu no século 19. Até porque, para fins demográficos, não importava muito o número de doentes e mortos fora das áreas de conflito militar e sabia-se que os escravos morriam cedo pelas condições em que viviam, pela carga de trabalho e pelos castigos sofridos. Havia até manuais para que se cuidasse deles, mas essa realidade não mudou. O que importava mesmo, então, era manter limpo o espaço público para a salubridade pública. Quando tornou-se economicamente importante, ciência e Estado deram as mãos na tarefa de cuidar das pessoas que julgaram pertinente salvar.

Em meados do século 19, duas epidemias dizimaram dois agrupamentos sociais diversos: o cólera vitimava negros escravizados, enquanto a febre amarela supliciava imigrantes europeus. Foi o momento em que o Segundo Reinado decidiu centralizar a saúde pública na Junta de Higiene Pública, em 1850, tirando a responsabilidade das mãos das municipalidades, cujo principal objetivo era combater… a febre amarela. O cólera e a tuberculose – outra doença que acometia principalmente os escravizados – foram escanteadas.

Na virada do século 19 para o 20, o Rio de Janeiro era conhecido como “túmulo de imigrantes”. Por lá grassavam tifo, tuberculose, rubéola, lepra, difteria, malária, varíola, febre amarela, entre outras doenças. A questão sanitária era um problema para a circulação de mercadorias e para a imigração. Mas o médico Oswaldo Cruz, o prefeito Pereira Passos e o presidente Rodrigues Alves decidiram, com poder de polícia, entrar na casa dos indivíduos pobres do centro da cidade e desinfetá-las, fechá-las, matar os mosquitos, exterminar os ratos e iniciar a erradicação de boa parte dessas doenças, assim como a expulsão dos pobres em direção a locais ainda mais insalubres, bem como à prisão ou ao Acre. Higiene e saúde pública, então, diziam respeito a limpeza e eliminação de focos de doenças juntamente com elementos urbanísticos “feios”, como a pobreza. A ressonância propagandística de “embelezar” a cidade talvez fosse maior do que a campanha sanitária satirizada pela imprensa.

A grande revolta viria com a obrigatoriedade da vacina contra a varíola. Isso porque, no século 19, a vacina era realmente perigosa e nada eficiente, podendo muitas vezes transmitir outras doenças contagiosas. Sabia-se disso e, de fato, era uma violência ser obrigado a despir o corpo para receber dentro de si uma substância entendida como veneno. Havia também a questão do pudor e da moral ao despir-se e ver a esposa despida – moralidade quebrada por uma autoridade que já havia tirado a casa dessas pessoas e forçado a sua realocação para uma região de mangue, enquanto a bela avenida Central era construída sobre os escombros de onde elas viviam, para deleite da burguesia carioca. Não se tratava de cuidar delas, mas tirá-las dali para limpar a cidade do contágio. Não surpreende a revolta.

Ao final do processo, a cidade estava pronta para uso: mais limpa, menos doente e com menos pobres.

Neste ano, o Brasil é acometido por uma pandemia cuja única profilaxia até o momento é o isolamento social, o que traz grandes prejuízos para a economia. Mas dessa vez, ciência e Estado, pelo menos em nível federal, não deram as mãos como nos exemplos anteriores. A mortalidade no Brasil é maior entre os mais pobres segundo dados estatísticos, e ainda assim o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse a empresários que é hora de “sacrifício” e que, por isso, eles deveriam pressionar outros Poderes da República para a reabertura do comércio. Contudo, o grande sacrifício estará nas indústrias, nas filas do comércio e nos transportes coletivos, enquanto esses empresários permanecerão protegidos.

É simbólico que uma das primeiras mortes causada pela Covid-19 no Brasil tenha sido a de uma empregada doméstica infectada pela patroa, que trouxe o vírus da Itália. Diz-se que ela pertencia a grupo de risco, e de fato pertencia: era pobre. A desigualdade no cuidado entre ricos e pobres no Brasil é hedionda. Segundo Dante Senra, há 50 mil leitos de UTI no país. Quarenta e seis milhões de brasileiros usam 50% desses leitos, enquanto os outros 50% são usados por 168 milhões. Sabe-se disso. Qual é a qualidade dos serviços de saúde da classe média e alta em comparação com a das classes vulneráveis? Mas, ora, para que tomar medidas para salvar vidas de contingentes que o Brasil quase nunca se importou em salvar? Vão morrer milhares sim, “e daí?”

Meses depois do fim do isolamento, o país estará novamente pronto para uso: mais limpo, com álcool em gel e com menos pobres. Não porque deixarão de ser pobres, mas porque terão morrido. Apesar de algumas tentativas social-democratas que apareceram em algumas importantes circunstâncias políticas do país, essa parece ser a política brasileira preferida contra a pobreza.

Rafael Mantovani é sociólogo, doutor pela FFLCH/USP. Autor de Modernizar a ordem em nome da saúde: a São Paulo de militares, pobres e escravos (1805-1840).


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