Sobre estigma, redes sociais e o triunfo do indivíduo

Sobre estigma, redes sociais e o triunfo do indivíduo
(Arte Revista CULT)

 

Já faz dias que circulou um vídeo na internet, fundamentalmente nas redes sociais, em que dois rapazes, Maycon Wesley Carvalho dos Reis, 27 anos, e o vizinho Ronildo Moreira de Araújo, 29 anos, subjugavam um adolescente de 17 anos, numa sessão de tortura de revirar o estômago. O vídeo mostra o garoto sendo brutalmente tatuado na testa. O dístico alertava: “sou ladrão e vacilão”. A tragédia aconteceu em São Bernardo do Campo, na região do ABC paulista. Detalhe: o adolescente tem problemas mentais e, ao que tudo indica, sequer chegou a roubar a bicicleta.

Abreviadamente, as imagens mostram Maycon, o tatuador, anunciando em tom bastante galhofeiro que a intervenção na testa do adolescente ia doer muito. “O que você quer que escreve?” (sic). “Você entrou aqui para fazer o quê?”, insiste Maycon. Visivelmente acuado, o adolescente vai respondendo: “eu sou ladrão, roubei uma bicicleta de um deficiente físico no farol”… Ao final da sessão, o tatuador pergunta: “Gostou do serviço?”

O episódio se perfila às práticas de vingança que, infelizmente, vigoram com força granítica no país, a exemplo do linchamento. Embora a cruel investida dos dois jovens (o que tatuou e o que filmou a cena) não se configure num caso clássico de linchamento, podemos estabelecer com este último alguns paralelos. Segundo o pensador José de Souza Martins, o Brasil está entre os países que mais lincham no mundo. Nos últimos 60 anos, mais de um milhão de brasileiros participou de ações de justiçamento de rua. Ainda para o sociólogo, existem raízes profundas para essa prática imemorial, que se constitui num verdadeiro ritual de loucura coletiva. O linchamento reaviva, entre outras coisas, as fronteiras entre um nós (cidadão de bem – expressão que me causa arrepio –, trabalhadores, ordeiros) e um outro (escória, malfeitor, ameaça ao bem-estar da comunidade, delinquente…).

Essa linha divisória contou ao longo da história com a projeção do estigma que desde os gregos foi concebido como signos corporais sobre os quais se prenuncia/anuncia algo mal e pouco habitual no status moral de quem os apresenta. O cristianismo atribuiu outro sentido ao estigma, tido como representações da graça divina. Na contemporaneidade, o estigma está mais associado à definição grega, vinculando-se a algo mal que deve ser evitado, uma ameaça à sociedade.

A estigmatização foi o recurso que animou a ação dos dois rapazes de São Bernardo do Campo. Ao tentar inscrever uma mancha indelével no rosto do adolescente, demarcaram o seu lugar no espaço social (a plataforma Afroguerrilha fez campanha de arrecadação para a retirada da infame inscrição; a Prefeitura de São Bernardo do Campo informou que vai “disponibilizar todo o procedimento médico e cirúrgico ao garoto”).

Redes sociais: o empoderamento do eu

Banhados pelo desejo de fazer justiça com as próprias mãos, Maycon e Ronildo realizaram um ritual privado, diferente do que geralmente ocorre nos linchamentos, alicerçados no espetáculo. O adolescente não foi submetido à sanha assassina de um grupo, mas violentamente torturado num espaço privado. Porém, mesmo sem plateia presencial, a tortura foi uma ação planejada para ser consumida nas redes sociais, portanto, para contar (e como contou!) com a anuência e aplauso de milhares de “cidadãos de bem”.

Não é de agora que as redes sociais estão no epicentro de um debate filosófico sobre os destinos da nossa existência, sobre a emancipação e o sacrifício da condição humana. Esse trágico acontecimento reatualiza essa reflexão. Ao contrário da proposta utópica da internet, que proclamou ser capaz de desprovincianizar o mundo, o que vimos, especialmente nos modos de configuração das redes sociais, é que o mundo diminuiu de tamanho, em vez de se ampliar nas malhas da cibercultura.

O filósofo Peter Sloterdijk considera que pagamos um preço muito alto ao ingressar na vida moderna, expresso na ausência de camadas protetoras:

“A civilização de alta tecnologia, o Estado de bem-estar social, o mercado global, a esfera midiática: todos esses grandes projetos visam, em uma época sem camadas de proteção, emular a imaginária segurança das esferas, tornada impossível. Redes e políticas de segurança devem, agora, ocupar o lugar das camadas celestiais, a telecomunicação deve fazer as vezes do abraço circundante. Envolto em uma pele midiática eletrônica, o corpo da humanidade deve criar para si uma nova composição imunitária.”

A comunicação, em sua feição midiática, tecnologizada, desponta como essa composição imunitária. Mas contra quem ou o quê? Não é à toa que falamos em “bolhas do Facebook”, expressão que sintetiza como nos pomos no mundo digital: sempre nos agregando a quem pensa como nós, cerrando fileiras nos conglomerados que concordam com tudo ou quase tudo que dizemos e pensamos. Sloterdijk lembra que desde a concepção nós nos desenvolvemos numa primeira bolha que é o útero materno. Uma vez autônomos no mundo, vivemos, para o filósofo, sob a égide de uma nação, um Estado – metáfora de uma busca perpétua pela caverna protetora de tempos imemoriais.

Ao que parece, os rapazes, autores da “punição” do adolescente, sequer cogitaram a possibilidade de prisão ou qualquer outra sanção porque, cientes de que teriam público amplificado: a camada protetora sob a qual eles se abrigaram nas redes sociais e que subscreveu orgulhosamente a ação. Eis o risco a que estamos expostos constantemente: Quando consideramos que o mundo é povoado de gente como a gente, ficamos corajosos, nos sentimos imantados por uma áurea de poder irrefreável. Vociferamos, destituímos, mostramos provas, denunciamos, matamos….

Nessa busca por abrigo, por ilhas protetoras, as redes sociais nos oferecem o atalho mais fácil para a deserção da Política, pensada aqui como gestão da vida coletiva, e abrem as comportas para a irrupção de indivíduos soberbos, senhores de si, plenos de opiniões e crenças, rasos na reflexão e pensamento (insisto: refletir e pensar não são tarefas exclusivas da academia).

Já mencionei o antropólogo Marc Augé em outros momentos para pensarmos a respeito. O faço novamente. Para ele, o grande paradoxo, a nossa grande ironia é que em tempos de dissolução do sujeito (substituímos o sujeito pelo indivíduo), vivemos “um excesso de ego”. A perda da crença da “salvação” via coletividade nos motivou a investir no ideário de que somos seres capazes de resolver problemas, sem ter que enfrentar a política em sua complexidade.

O adolescente de 17 anos só foi destituído da forma que foi porque os seus algozes sabiam que milhares de EUs, de indivíduos “cansados de uma justiça que não os protege da insegurança do mundo” subscreveriam o “extraordinário feito”, adjetivação que li em comentários na odiolândia. Para o psicanalista Christian Dunker, Freud empregou a frase “sua majestade, o bebê!” para evidenciar quem era a autoridade da casa. Expressão que podemos adotar para os indivíduos que trafegam nas redes sociais: “sua majestade, o soberbo”.

Crédulos que são os tais, porque portadores de opiniões e ações que se espraiam pelo mundo por meio do sistema nervoso digital do planeta Terra, os indivíduos são uma terrível ameaça para a existência de sujeitos. Qual caminho seguir? Civilização ou barbárie?

(1) Comentário

  1. o que ocorre atualmente é uma disseminação de ideias, por meio das redes sociais, onde informações são espalhadas e compartilhadas de uma maneira muita rápido, pois o acesso a tecnologia, como a internet, cresceu muito no nosso país. A sociedade cansada da impunidade, querem fazer justiça com as próprias mãos, não se importando com a violência que estão praticando, isso se deve ao reflexo que o Brasil enfrenta de não existir leis vigorosas, e as pessoas sendo constantemente vítimas de assaltos. O ponto de visão parte quando praticamos à violência, estamos sendo iguais aos criminosos, o que falta no nosso cotidiano é uma carência de educação, os governantes não sabem lidar com a situação, não fazem os seus papéis perante a sociedade. Por meio das redes sociais, as pessoas tem uma maior atenção por causa da grande circulação que é esse veículo comunicador, muitos não tem noção sobre as leis Brasileiras sobre os direitos humanos, chegamos numa situação onde a falta de respeito, violência e impunidade são partes do dia a dia.

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