Rodopios da mente

Rodopios da mente
Foto: Hannah Troupe/Unsplash

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de agosto de 2020 é “solidão”.


“De repente, não mais que de repente…” O poema de Vinicius rodopiava em sua cabeça feito espiral, enquanto assistia aos noticiários que assustavam o mundo. Ela e Princesa, sua gata indócil, ambas sentadas confortavelmente na poltrona já envelhecida pelo tempo.

O tempo… Fechou os olhos, lembrando imagens do que parecia ter sido ontem. Sim, foi ontem. Ontem que brindara a chegada do novo ano com as velhas amigas. Ontem mesmo que fantasiadas foram ver a saída do tradicional bloco carnavalesco. Ainda ontem, sentaram-se no café da esquina e programaram a excursão que fariam em julho. Tudo mudou desde então. Olhando para trás, o ontem parece ter acelerado os ponteiros. Tantas coisas aconteceram. Tantas informações vindas de lugares distantes, dando nova rota aos planos. “O mundo mudou”. Riu da frase clichê, mas tão verdadeira agora.

Pensou em mudar o canal, mas a voz do repórter revelando os números de novos casos na sua cidade, deixaram-lhe estarrecida. Sentiu o cansaço na alma.

“De repente, não mais que de repente”. Uma ideia invadiu sua mente. E se…

Não! Balançou a cabeça negativamente. Levantou-se querendo afugentar os pensamentos. A única coisa que conseguiu, foi afugentar a gata que pulou da poltrona em busca de outro lugar. Seus pensamentos, ao contrário, permaneceram ali, aninhados no canto da sala.

“Em caso de emergência ligue para a Central…” o repórter dava o número do telefone, mas ela não queria ouvir. Sem hesitar, desligou a tv. Tudo aquilo lhe assustava.

Sentia dores no corpo devido à tensão dos músculos enrijecidos. Caminhou pelo pequeno apartamento de quarto e sala, tudo devidamente em ordem, nada fora de lugar. Somente o mundo – pensou.

A gata passou por ela, indo abrigar-se na sacada da janela. Esse era o horário do silêncio.

Sempre gostou da noite, agora todo este silêncio gritava alto aos seus ouvidos o desconforto que avançava rápido em cada canto da sua mente.

A ideia valsando. “E se eu sentir… Se não der tempo… Se eu…” Pegou um papel e resolveu anotar seu nome completo, número do cartão do plano de saúde, RG e o telefone da amiga mais chegada. A amiga irmã. Pensou em ligar para ela, explicar os pensamentos estranhos, a possibilidade de uma contaminação ou um outro mal qualquer.

Nesse momento de afastamento, vai que… Achou por bem não a assustar àquela hora da noite, com seus fantasmas tagarelas, seus monstros de garras e hálito quente.

Olhou o papel escrito com letras maiúsculas. Destacou o nome e o telefone da amiga.

Qual o melhor lugar para pôr o bilhete? De pé na porta da entrada, estudou o lugar mais visível. O quadro! Sim, o lugar perfeito! Todos que ali entravam, deparavam-se com a imagem da mulher, uma jovem seminua, olhando para seus admiradores em soslaio. A timidez ali presente. Não tinha mais aqueles olhos, muito menos o corpo, mas gostava de manter o quadro ali, lembrando o que um dia foi.

Eis, o melhor lugar! Não teve dúvidas, prendeu o bilhete no quadro.

“De repente, fez-se do amigo próximo o distante…”

Sempre fora uma mulher cercada de amigos, mas nesse novo tempo, os amigos tinham que se manter afastados. Justamente esse afastamento é que lhe trazia pensamentos sombrios. Nunca foi de ter medo, mas agora… A ideia da morte lhe tirava o fôlego.

– Princesa! – Chamou pela gata, mas a danada tinha vontade própria, passou por ela e seguiu adiante.

Uma sirene de ambulância atravessou as paredes da sala, trazendo som ao seu silêncio.

Preferiu ligar a TV.

– Pelo menos ela me faz companhia! – Falou alto, olhando para a gata.

Na TV um programa de humor. Um refresco nesses tempos confusos.

Aos poucos foi se deixando levar pelos personagens. Princesa passeou mansamente, enroscando-se nas suas pernas, seu jeito de pedir desculpas. Sem receios, pulou no seu colo e se ajeitou confortavelmente, exigindo o cafuné. Ela sorriu. Passeou as mãos no seu pelo. Pronto, amigas outra vez!

Uma aragem entrou de fininho, fazendo-as se encolherem, ela e a felina.

Aos poucos o som da TV foi ficando distante, o sono da madrugada ocupando cada espaço, seus olhos diminuindo vagarosamente. Vinicius de Moraes voltou a cantar em seus ouvidos: “De repente, da calma fez-se o vento / Que dos olhos desfez a última chama…”

O vento passeou pela sala, explorando os cômodos. Calmo, despretensioso, assim como a gata adormecida em seu colo. E o papel se desprendeu do quadro, rodopiou levemente pelo ar, indo abrigar-se atrás de uma cômoda solitária.

De repente, não mais que de repente…”

 Ana Cristina Henrique Silva, 48 anos, é aprendiz na arte da escrita. Formada em Letras Vernáculas e em Interpretação Teatral é encantada pelo misterioso mundo das palavras. Natural de Salvador/Ba é mãe de um jovem garoto, fonte maior das suas inspirações.

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