2020, o ano da peste (beijo aflito)

2020, o ano da peste (beijo aflito)
(Reprodução)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de abril de 2020 é “quarentena”


Oi.

Sei que não tenho escrito muito. Eu me pergunto por que você deixou de escrever. Eu não tenho escrito muito, mas tenho lido muito. Parei com muitas coisas e, certas vezes, invade a sensação que meus poemas são como a terra e assim devem retornar ao pó como eu . Poucas certezas para expressar. Por outro lado o homem que expressa certezas é um tolo por definição.

Agora isso, peste né? Com arrefecimentos e descrença no século em perdemos as luzes e a razão. Quando olho pela janela eu me questiono se o maior medo da doença não seria encarar quem realmente somos quando nos olhamos no espelho. E agora, não outra pessoa para se olhar além de nós mesmos.

Muita leitura, não é? Seria uma lista interessante se começasse aqui. A leitura é um refúgio dos dias massacrantes e melhor passeio que posso me propiciar. Quando começo a escrever cartas, sei que os versos secaram. Eu coloco o lápis na mão para me exercitar e como não sei desenhar, escrevo qualquer palavra. Hoje estás aqui eu envio pra você. Claro que não sei quando irei aos Correios. Haverá Correios quando descer novamente deste isolamento? Será que seremos felizes de novo? Será que alguém mais pensa que estas perguntas no plural são insanas? O melhor da felicidade é a ilusão que jamais seremos tristes de novo.

Enquanto a vida parece que me roubou para os afazeres diários, minha mente parece fugir e estabelecer outras importâncias. Apenas meus livros, minhas cartas, tudo além parece simplesmente perda de tempo. Chove tranquilamente lá fora. A chuva pode ser uma bela máscara para os problemas do mundo.

Não sonho, você sonha? Contar o sonho é ordenar o impossível, dar nome ao caos, formular um rumo que não há.

O que eu quero escrever? Quando esta pergunta fica mais alta que a realidade eu percebo que vou escrever sobre o desconforto de não ter o que falar. Isto em si é escrever sobre o silêncio da literatura.

Outro dia percebi que me tornara naquilo que mais me causava estranhamento na infância: os velhos com inúmeros pedacinhos de papel no bolso da camisa. Um guardador de pergaminhos, uma biblioteca de inutilidades ambulante. Não sei por que escrevo memórias em pedaços inúteis de papel. Minha cabeça doí com respostas que não vem, responsabilidades e incertezas. A existência bate seu sino ensurdecedor e o tempo é indiferente. Ainda mais aquartelados que estamos.

Há dias em que saber por onde começar torna-se um desafio do tamanho da vida. Você pensa nessas coisas? Somo obrigados a ter uma resposta? Eu tenho fugas de mim mesmo, aterrorizado. A postura adulta que preciso ter diante de certas pessoas me impede de sorrir. Certas vezes a minha máscara social pesa tanto que quero fazê-la em pedaços ainda no meu rosto. Ontem eu quis chorar sem motivo diversos momentos do dia. O interfone tocou, mas ninguém respondeu. Acendi um incenso. Bebi água. Bebi café também, e vinho, e depois água. Coloquei todos os livros de poesia no chão e giro até que pare na frente de um deles e abro em qualquer página. Qualquer leitura faz sentido quando estou imerso. Qual felicidade?

Qualquer linha de diário que se escreva nestes dias soará no futuro como os “diários da peste” medievais. Todos bem, tudo bem, mas tudo mal com aquele desalento beirando o pânico geral. Eu também começo a me sentir afetado pelo clima de desconfiança. Sanatório geral, né? Romantizar a situação é um privilégio das classes superiores.

Desliguei o rádio que me fazia sentir como um civil entrincheirado nos escombros da cidade. Há o aqui e o lá e eu sou a terra de ninguém. A guerra invisível não é fria como diziam. As pessoas são frias. Já passa de 20h e a sensação de que há algo específico e coletivo lamenta-se confuso na minha cabeça. A rua molhada reflete apenas ela mesma esta noite.

Abrindo um livro aleatoriamente, suas palavras falaram comigo: “Sei que alguma coisa muito importante vai se fazer em mim e é preciso colher o máximo de dados e informação agora para o que vou fazer depois.” Tive certeza que precisei ler isso para encontrar a mim mesmo, para não desesperar, para respirar fundo e colocar a mente em alguma coisa. Uma tarefa, qualquer que fosse, iria me encontrar e com isso a voz sairia.

Tudo parece incerto amanhã. Por isso vou lhe escrever partes deste meu diário e lhe enviar pela internet. Todas as cartas são uma expressão de uma alma carente. Todo trabalho escrito e intelectual é uma carência que prescinde o desejo de ser lido e encontrar validação no outro. Isolado em uma ilha, o náufrago marca a pedra pela sua sanidade; para que sua carência não o domine e nas suas marcas ele encontre a existência do outro nele mesmo. Como o Hemingway escreveu: “O homem não é feito para derrota. Um homem pode ser destruído, mas não derrotado”.

Eu preferia sair e selar tudo isto dentro de um envelope.

Beijo aflito.

ps.: entre aspas primeiro citei o Mora Fuentes, depois o Hemingway.

 

Roberto Dutra Jr. é carioca e suburbano. Já escreveu artigos acadêmicos, foi editor da Revista Escrita (PUC-RJ), contribuiu para o jornal Panorama da Palavra e colaborou com a revista Mallarmargens. É colunista regular do blog literário Zonadapalavra e faz experimentos foto-poéticos no Instagram (@robertodutrajr). Alguns de seus poemas foram publicados nas antologias Escriptonita (Patuá, 2016) e Porremas (Mórula, 2018). Publica em 2019 o livro de poemas CASA, pela editora Urutau.

 

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