Ricardo Escudeiro: Facção Central e Street Fighter para o Parnaso
O poeta Ricardo Escudeiro, autor de "A implementação de um trauma e seu sucesso" (Foto: DIvulgação)
Quando li Alien vs. Predator (Penguin Books, 2012), elogiadíssimo livro de poemas do americano Michael Robbins que remixa cultura de massa e referências eruditas em sonoros versos rasgantes, fiquei pensando que ninguém andava explorando aquela fórmula poética no Brasil.
Em trabalhos como “Use your Illusion”, Robbins esculpia uma poesia profunda e épica, mas com os dois pés cravados no seu tempo, usando, em sua forja, os símbolos da cultura pop para transmitir imagens e sentimentos imortais, como se usou, outrora, a mitologia grega, a religião cristã ou o ideário comunista. Uma apropriação madura dos signos da cultura de massa que não resvala no seu mero culto, tampouco em crítica naive.
A implantação de um trauma e seu sucesso, de Ricardo Escudeiro (Patuá, 2019), é o livro que eu esperava desde então. Nele, Escudeiro comete poesia que rasga a alma humana em busca de seus cantos mais profundos, mas que se utiliza de vasto repertório pop para compor sua musculatura. Estão lá a cacofonia de referências e samples características da pós-modernidade, mas sem a fofurice inerente aos poetas de algodão doce que outrora se arriscaram nessa seara – nem a tentativa de emular, de forma pálida, o “pop” setentista de Leminski ou da geração mimeógrafo.
Veja bem, a quantidade de referências dos parágrafos acima quer ser justa com a complexidade lírica do poeta resenhado. No entanto, não se assuste com a erudição do escriba que cita Camus e Henryk Gorecki como quem prepara a playlist do próximo churrasco. Escudeiro é ex-metalúrgico, morador de quebrada e inclui, em seu virtuoso leque de referências, o rap soco no coração do Facção Central e os influentes Racionais Mc’s.
Sim, Escudeiro é periférico, mas escapa dos padrões da autointitulada “poesia marginal”. Não atrela seus versos à necessidade da gíria, da violência ou da descrição da miséria cotidiana – mas também não se esquiva dessas quimeras em poemas como “Superstição”. Por outro lado, seus versos são sofisticados o suficiente para dar um “Tiger Uppercut” – título de um deles, que faz citação ao golpe do personagem Sagat no clássico game Street Fighter 2 – em qualquer poetastro acadêmico que se pretende blasé para se fingir profundo. Não se acanhe, provável leitor, muitas vezes é necessário reler o poema de Escudeiro para captar todos seus significados.
O autor de “A implantação de um trauma e seu sucesso” também é guitarrista e fã de heavy metal. Quando acrescenta doses de periferia e pop à sua sofisticada alquimia, não o faz do ponto de vista de um estrangeiro que julga a “quebrada” como um clichê estático onde cabem pagode e evangélicos, mas não a banda Nightwish e o cinema de Paul Verhoeven. Existem aqui fartas doses de Sessão da Tarde, rock comercial e video-game; fermento de uma cultura massificada consumida pelas massas não idealizadas por uma esquerda que só acredita num Deus que sabe dançar ciranda, mas não acredita que na periferia animes e games de luta possam germinar obras primas como “A implantação de um trauma e seu sucesso” ou “Regina”, do rapper niLL.
Escudeiro mostra que um poeta parido fora da bolha dos grandes centros pode livrar-se de qualquer clichê que um filho de banqueiro espera dele e armar-se do armorial que lhe parecer mais propício. Seja a riqueza verbal e profundidade hermética dos sentimentos, seja o mutirão de favela em “pequenópolis”, uma letra do Judas Priest ou sublimes versos como “mas por que esperar alguma cegueira/para aprender/pelas mãos um rosto?”.
A periferia é sarau, mas também é fliperama. É slam e é o Parnaso. O que se produziu fora da Casa Grande foi sempre o melhor do Brasil. E quem espera que dela brotem os versos outrora tortos daqueles apelidados de hércules-quasímodos está por fora. O mais sofisticado Brasil explode da quebrada. Agora.
FRED DI GIACOMO é escritor e jornalista; autor de Desamparo (Reformatório) e autor da coluna “Arte fora do centros”, publicada no UOL.